domingo, 31 de agosto de 2014

Richard Dawkins, um...fanático?


Apesar de ser ateia a vida inteira, nunca procurei material de escritores ateus, tratando de ateísmo, por ter decidido que formaria meu entendimento sobre o assunto de forma a mais independente possível. Por esta razão, até uns três, quatro anos atrás eu desconhecia a existência de Richard Dawkins e foi de forma indireta que soube ser ele ateu, quando lia A Grande História da Evolução. 
Por ser ele um militante ateu, como soube quando procurei informações sobre ele, não o levei a sério. No meu entendimento, quem milita, milita por uma causa, uma ideologia e ateísmo não é uma causa, não é uma ideologia. Ideologias são matéria de crença e não vejo nada mais antagônico do ateísmo do que a crença em combater a crença. Para mim, ateísmo é tão somente não crer em deuses. A partir do momento em que a pessoa elege uma causa, uma ideologia, e passa a militar em nome dela, embora seja ateu de deuses, é crente na causa que elegeu e tudo bem. Mas, quando essa causa é o ateísmo, as coisas ficam no mínimo estranhas.
Ateus podem e devem se manifestar a respeito de como veem a crença e as religiões.
Mas sair pelo mundo "levando a palavra", tentando converter as pessoas ao ateísmo?  
Isso é profissão de fé. Fé entrelaçada ao ateísmo me soa ridículo e não levo a sério o que me soa ridículo.
Mas por esses dias, estava acompanhando uma renhida discussão num fórum, a respeito de uma publicação de Dawkins no Twitter, em que ele dizia ser imoral a proibição do aborto para quem o queira. Na verdade, não sei se ele escreveu mesmo isso, estou vendendo o peixe conforme o comprei e não me interessou ir atrás de verificar, já que esse, para mim, não é o ponto interessante.
Mais que interessante, foi preocupante observar seus seguidores.
Começando pelo fato de um ateu, na prática de disseminar o ateísmo pelo mundo, ter seguidores. 
Além de ateia sou liberal, significando  isto, entre outras coisas, que penso ser de direito inalienável das pessoas o exercício da crença. E isso nada tem a ver com o pretexto da crença usado como legitimação de violência e intolerância. Quando se trata de ateísmo versus crença, sou afeita à tolerância, a um laissez faire aplicado à convivência entre crentes e não crentes. Mesmo quando, como é o que volta e meia acontece, isso seja unilateral.
Então, é compreensível que tenha ficado incomodada com Richard Dawkins e com quem o secunda. 
Ainda estou lendo Deus, um delírio, mas assisti alguns vídeos dele, além de ler uma porção de coisas sobre ele, contra e a favor.
Até onde pude perceber, os principais argumentos de Dawkins contra as religiões são o o terrorismo fundamentalista e as guerras religiosas, a doutrinação de crianças e o possível entrave para o avanço da ciência, que seria provocado pelo aumento do poder das religiões através de uma maior disseminação das mesmas.
Bem. Dawkins é um zoólogo renomado, divulgador da ciência, famoso, bem articulado, com vários livros muito bem vendidos.
Eu sou ninguém. E mesmo assim acho que quando o assunto é a causa ateísta Dawkins está agindo como um fanático um intolerante e está errado.
Dawkins parece ter elegido para si a causa de salvar a humanidade das religiões. Quem deu a ele esse direito? Quem pediu a ele que o fizesse? 
Até o dia de hoje, por tudo que já observei, nunca houve um salvador da humanidade que não acabasse por ser também um tirano, um déspota, em maior ou menor grau. E não dá para ser déspota sendo tolerante. Dawkins quer acabar com as religiões. Nas palavras dele mesmo:
Meu grande sonho é a completa destruição de todas as religiões do mundo.
Não parece fazer parte das considerações dele que as pessoas queiram ter uma religião, uma crença, e que elas têm direito a isso. 
Quando adota essa posição, Dawkins fica bem parecido com fundamentalistas fanáticos que combate. 
É gente fanática assim que usa palavras como destruição
E é bem possível que esse fanatismo e intolerância de Dawkins estejam levando-o a uma fronteira entre o que ele pode ter entendido como boa intenção e a desonestidade intelectual.
Duas frases de Dawkins em um de seus vídeos me oferecem material para reflexão, mas não a reflexão que ele pretendeu.
Primeiro ele diz que:
Longe de estarem vencidos, militantes da fé estão em marcha no mundo todo, com consequências aterradoras.
 E complementa:
 Como cientista, me preocupo muito sobre como a fé prejudica a ciência.
O corolário dessa afirmação bem pode ser que Dawkins está dizendo que o avanço da fé pode vir a impedir o avanço da ciência.
Será essa uma proposição em total consonância com a realidade?
Para considerá-la devemos ter em mente que, desde o momento em que o ser humano se pôs sobre duas pernas, nunca mais parou de fazer ciência. E já houve longos períodos em que a religião foi dominante. Se formos ser totalmente honestos, foi no seio das instituições religiosas que teve início o grande salto científico que nos levou às viagens espaciais e à fissão do átomo.
E, até mesmo, àquilo que forneceu o grande questionamento sobre a origem da vida e sua evolução, contestando com bases sólidas a versão da religião sobre esses temas. Não nos esqueçamos de que Darwin era um homem de fé e Mendel era um monge.
Não é exato, então, nem honesto dizer que o avanço das religiões vá se tornar impeditivo para o avanço da ciência. 
Mesmo que chegássemos, hipoteticamente, a um ponto em que alguma religião fundamentalista se tornasse dominante em nível mundial, sempre haveria, como sempre houve, os outsiders. Uma coisa que Dawkins, até onde percebi, nunca faz é levar em conta a natureza humana. Não tenho dúvida nenhuma de que se a prática da ciência chegasse a ser proibida, haveria decerto alguém, ou vários "alguéns", que se lançaria a ela com ainda mais denodo. É da natureza humana desafiar proibições.
E, por mais desagradável que seja considerar, a ciência não oferece às pessoas o que as religiões oferecem. Goste-se ou não, não é possível estabelecer com a ciência a relação de pertencimento que a religião propicia. 
Quando Dawkins se diz preocupado com a doutrinação religiosa das crianças, que ele descreve como “um vírus que afeta os jovens, geração após geração”, eu fico me perguntando se ele está sendo deliberadamente desonesto, se está cego pelo próprio pensamento ou se é mesmo o caso de nunca considerar a natureza humana. 
Se não fosse a religião, a crença em deuses, seria outra coisa.
Na verdade, é outra coisa, quando não é a crença em deuses que prevalece e  a propósito disso faço uma rápida digressão.
Para quem está minimamente antenado com o que tem acontecido nas últimas décadas, há a difusão e aceitação de  fenômenos que quase chegam a ser dogmas, se não o forem de todo, que podem ser denominados, à falta de expressão melhor, o direito a ter direitos, e a tirania da igualdade, presentes no socialismo, que bem pesadas e medidas as coisas, é em si mesmo uma espécie de religião, estando tão disseminado nas sociedades que muitos nem se dão conta de que vivem sob seus vários preceitos. Um desses preceitos é a noção de que todos têm direito a tudo, mas não se vê o reparo, necessário, de que para todo direito há sua contrapartida, que é o dever. A tirania da igualdade têm efeitos ainda mais sérios. Em nome dela, anula-se o direito de se ser diferente, de se discordar.Juntando as duas coisas, tem-se que a pessoa pode ter direitos e ser igual, desde que sejam os direitos certos e que a igualdade seja a que foi determinada pelo grupo mais incisivo, mais barulhento. E ao fim e ao cabo, volta-se ao ponto de partida. Se não for a crença em deuses, é outra coisa, outro tipo de crença. 
O argumento de Dawkins, sobre o terrorismo fundamentalista e guerras religiosas é ainda mais capcioso.
Para que ele se sustentasse, seria necessário que nunca tivesse existido outro tipo de guerra que não as religiosas e que só existissem os terroristas religiosos, e além disso, que sua motivação fosse, apenas e exclusivamente, sua crença em algum deus.
Desnecessário discorrer sobre as guerras serem apenas de cunho religioso, ao longo da história. 
Quanto ao terrorismo, ele tem suas origens no século 17, por motivação política e sob essa motivação foi mais recorrente que o terrorismo religioso. E até mesmo esse tem um forte componente político. Os conflitos israelo-palestinos se dão muito mais em função de disputa de território do que em função da religião. Essa serve apenas para legitimar aquela.
Igualmente, os jihadistas no Iraque. 
E por trás de tudo isso, sempre e sempre a natureza humana. Não é a crença em deuses o que cria ódios, fanatismos guerras e intolerância. É a natureza humana quem cria essas coisas. A crença pode ser usada como meio para viabilizá-las e o deus da crença também serve para legitimá-las.
Há até uma graça nisso, irônica e involuntária. Ao deixar de lado o fundamental, que é a natureza humana, Dawkins acaba por conferir substância de realidade ao Deus que ele está combatendo como mito. Se ele deixa de lado Deus como expressão da natureza humana, Deus acaba sendo uma existência autônoma, externa ao ser humano.
E há uma diferença tremenda entre ateus que se expressam sobre a crença em deuses, expondo suas opiniões e alguém que, como Dawkins, usa sua posição de destaque para promover a causa do ateísmo. Já não bastasse a esquisitice de o ateísmo ser convertido em causa, quando se propõe a sair pelo mundo pregando o fim das religiões como solução para alguns dos males da humanidade, usando da manipulação factual, para dizer o mínimo, Dawkins permite que se duvide de sua idoneidade intelectual.
Mas, pode ser ainda pior que isso.A forma como ele coloca as coisas, fazendo da exceção a regra - e terroristas são a exceção e não a regra; obscurantistas religiosos são exceção, não a regra - para servir como argumento da necessidade da completa destruição das religiões, não o distingue em nada dos fanáticos religiosos. Faz parte do discurso desses fanáticos caracterizar como expressão do mal quem não comunga de suas crenças. No caso de Dawkins ainda é mais grave, pois da forma como age atribui a todos os seguidores de todas as religiões comportamentos que são de alguns. É mais grave por que Dawkins é uma pessoa esclarecida. Ou deveria ser.
Religiões nunca foram solução para os problemas da humanidade. Tampouco o ateísmo, convertido em causa, o será. 

Um rabi ironiza Dawkins como o “Novo Messias”, num dos vídeos. É possível que ele não esteja muito longe de ter enxergado em Dawkins o mesmo impulsionador que move os tradicionais messias e profetas das religiões: ter uma “mensagem” salvadora, que deve ser levada aos quatro cantos do mundo, para com ela evangelizar o infiel, nem que seja contra as convicções originais deste infiel.
Será o caso do igual que reconhece seu igual?



2 comentários:

  1. Minha amiga Shirley,

    Li seu artigo com especial interesse, visto que sou simpático à causa ateísta. (risos) Também não gosto muito das palavras militância e proselitismo mas sou daqueles que, conforme você já teve a oportunidade de ler em um dos meus artigos, acredita que fogo muitas vezes se combata com muito mais fogo.

    Contrariando a sua opinião, penso que a causa ateísta exista e que seja necessário falar sobre isto, na medida em que existem situações em que há um claro desrespeito ao direito de não crer. Em muitas sociedades, incluindo a nossa, os incréus sofrem tanto preconceito e intolerância quanto minorias étnicas, religiosas ou de gênero. Considero também que o obscurantismo que muitas correntes religiosas apregoam, seja uma clara ameaça ao futuro do progresso humano e também ao progresso já alcançado. E, infelizmente, tenho testemunhado ao longo da vida que muitas vezes a regra se sujeita ou até apoia silenciosamente a exceção.

    Sobre a utilidade da crença não discordo, até porque a religião foi a primeira tentativa humana de entender o mundo que nos cerca. Mas concordando com o que li em um artigo de um ex teólogo recentemente, o fato é que, hoje, a maioria de nós não teria dificuldades em abandonar suas fantasias religiosas se pudessem ter suas questões existenciais respondidas.

    Em síntese, o que Dawkins defende é que tenhamos o humanismo, o pensamento crítico e racional como fundamento. Embora eu compreenda que haja uma riqueza cultural intrínseca em algumas culturas religiosas, eu não vejo porque a educação não possa ser a base da construção da sociedade e do ser humano, em lugar de doutrinas e, portanto, não vejo porque não [militar] por esta causa. Até porque algumas características das religiões são reprováveis. Em algumas tribos do Xingu, por exemplo, gêmeos devem ser mortos ao nascer porque são sinônimo de maldição; em outras culturas mundo afora ocorre todo tipo de absurdo em nome dos credos e tradições. Eu sei que este não foi o propósito do seu artigo mas pergunto: Até que ponto devemos ficar passivos diante de tradições absurdas e cruéis, intromissões, imposições e perseguições, por respeito à tradições religiosas?

    As afirmações de Dawkins podem, para alguns, soar intolerantes, mas tenho um palpite de que seja uma postura intencional. Ele, conforme você bem lembrou é um zoólogo renomado, divulgador da ciência, famoso, bem articulado, com vários livros muito bem vendidos. E justamente por este motivo acho que quando o assunto é a causa ateísta, Dawkins não está agindo como um fanático ou um intolerante e não está errado. Eu, assim como você se coloca, comparado a ele, sou ninguém. Mas confesso que minha postura, no campo das ideias, é também muitas vezes pensadamente agressiva. O que para alguns, pode também parecer arrogante, fanática ou intolerante. Mas, repito, é antes de tudo intencional.

    Considero, portanto, que a atitude dele seja uma reação calculada às inúmeras e persistentes tentativas da religião organizada de se infiltrar para distorcer ou subverter o conhecimento formal ou influenciar a sociedade neste sentido. Ele, como um divulgador de ciência, optou pelo confronto, por questionar em campo aberto, por convidar aos outros ateus, céticos e pensadores críticos a vir a público, dizer o que pensam e se posicionar. Não sou um seguidor de Dawkins, sigo a mim mesmo mal e parcamente, pois algumas vezes me traio (risos). Mas considero de suma importância que alguém que tenha uma posição tão evidente na tribuna fale, defenda e questione. E sabemos que não somente ele, mas outros nomes vultosos na história se posicionaram muitas vezes de forma também eloquente na defesa do pensamento crítico e na crítica a credos e misticismos quando estes confrontaram a ciência e o secularismo.

    Portanto, cordialmente discordo.

    Abraço!

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