sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Por toda a vida e além.


Estava ali para se despedir. Podia ser que não partisse hoje, talvez nem amanhã, possivelmente não fosse ainda na próxima semana, mas nada provável além disso. E tinha que dizer adeus hoje, da forma adequada. Duvidava muito, quase tinha certeza, que esse abril produzisse uma outra manhã tão gloriosa, tão propícia para lembrar. Também, com toda certeza não teria esse precioso tempo sozinha outra vez, antes de ir.

Precisava de estar sozinha. A sua era uma despedida do tipo que requer rememoração, resgate do já vivido, encontro consigo mesmo. Essas coisas exigem solidão e silêncio. E privacidade, principalmente privacidade.
Eles tinham boa intenção, sim, mas eram tão invasivos! Invasivos e um nadinha insensíveis, a bem da verdade. Para eles, ela era apenas a velha
Sorriu, pesarosa. Depois de tudo, no fim você se torna um ente amorfo, definido por uma palavra. É a palavra certa, é claro, velha, mas ser velha é uma condição que tira tanto da pessoa. Tira-lhe o corpo e deixa no lugar um amontoado de ossos alquebrados envoltos num saco amarfanhado de pele. Tira-lhe a visão e deixa no lugar uns olhos remelentos que mal dão conta de enxergar a dez centímetros o que antes era visto a metros de distância. Tira-lhe a audição que não exige esforço consciente e deixa no lugar uns ecos abafados que precisam vir da direção e distância certas, senão são apenas bocas mexendo e ruídos envoltos em algodão. Tira até o direito de ser vista como uma pessoa, uma mulher. É, só, a velha. 

Havia momentos em que chegava a se surpreender, quando se dava conta de que a entidade, a velha, que era tratada com excessiva polidez e alguma condescendência, que era alimentada com comidas sobre as quais não fora consultada, que era deixada vários períodos sentada ou deitada num canto, sozinha mas nunca realmente só;  não apenas se surpreendia, mas se assustava com a compreensão de que essa entidade era ela. Talvez por isso preferisse sempre os períodos de negligência benevolente, nos quais, já tendo sido lavada, alimentada e entretida com aquelas conversas inconsequentes meio gritadas e regadas à profusão de sorrisos que ela não tinha bem certeza de serem totalmente sinceros. Depois a deixavam, mas sempre havia alguém por perto.

Ao menos nesses momentos ela podia voltar-se tranquilamente para si mesma, olhar-se dentro de sua mente. Ali ela nunca era a velha. Era o que era, o que sempre fora e continuava sendo, embora ninguém mais se desse conta disso: uma mulher.
Sobressaltou-se, e não pela primeira vez, com a possibilidade de estar alimentando sentimentos de rancor e ingratidão para com eles.
Conscientemente não se sentia assim, mas sabia que nem sempre o que está à superfície é reflexo fiel do que nos vai nas profundezas da mente. Teve um instante de divertimento: sua mãe teria dito da alma.
Não, ela era grata, profundamente grata a eles. Sabia muito bem que poderia ter sido tudo diferente e indizivelmente pior. Apenas, eles não tinham culpa de ela ter-se tornado velha; não tinham como saber o que é esse inverno da vida, inverno sem perspectiva de primavera. E na maior parte do tempo, ela lidava bem com isso. Mas não se negava os momentos de melancolia pela perda da pujança de viver que é permitida por um corpo jovem, e o estranhamento com a dicotomia de sentir-se uma em sua mente, sabendo-se outra em seu corpo.

Em sua mente ela ainda era a essência de mulher que definira para si mesma numa outra manhã como aquela, muito tempo atrás. Uma mulher na plenitude da vida. De todas as formas possíveis para ela.
Fora naquela manhã que ela se vira frente a frente com o rumo que deveria dar à sua vida; fora naquela manhã que ela aprendera mais sobre si mesma que em todos os outros trinta e dois anos anteriores e que se surpreendera com a forma como a vida encontra formas de seguir adiante mesmo quando se tem certeza de que não vale mais a pena viver.

Saíra daquela sala tornada subitamente assombrada, povoada pelo espectro de uma dor que se dividia em miríades de ataques de nunca mais, se reagrupavam em sólida massa de isso não está acontecendo e a golpeavam com a velocidade de um bólido desgovernado, vindo de todos os lados: a consciência de uma perda tão irreparável que sentia tanta necessidade de negar-se como se tem necessidade de respirar. 

Uma moça lhe perguntara se queria usar a capela do hospital e em seguida recuara um passo, assustada. Não compreendeu naquela hora; depois, deu-se conta de que o que assustara a moça fora o absoluto vazio repleto de dor, que transbordava de seus olhos.

Agradecera e recusara. Não por nenhum pensamento consciente, mas porque suas pernas tinham esquecido como se mover. Em seguida notou sua mãe e sua irmã, insistindo com ela para irem à capela. Essa foi a primeira surpresa em relação a si mesma. Que pudesse, naquele momento, irritar-se daquela forma. Zangou-se com as duas por ter pensado que ou elas estavam se aproveitando daquela sua dor medonha, da sua fragilidade, para leva-la a algo que sabiam, repudiava, ou nunca a tinham realmente levado a sério.Com a raiva vieram as pernas. Foi para fora. Era de manhã, muito cedo ainda. Sentou-se num banco, não sabia o que fazer em seguida. Sua filha, sua bebê, morrera. Ontem ela estava lá, na sala de casa, deitada no cobertor, usando um sorriso de boca desdentada tão bonito que dava um aperto no coração. Hoje ela era algo que sua mãe não podia considerar, sob pena de enlouquecer: era um não ser. Era um nunca mais se estendendo pela vida afora. Era um vazio locupletado de culpa, de se, de uma atordoada incompreensão.Ela a pusera no berço à noite, como vinha fazendo nas últimas três semanas. Aos dois meses e meio, todos diziam que devia acostumá-la nessa idade a dormir sozinha ou nunca mais o conseguiria. Até então ambas dormiam namesma cama e a menina mamava praticamente a noite toda. Por que isso a esgotava durante o dia e por ter ficado com medo, quando lhe disseram que era perigoso para o bebê dormirem juntas, que ela poderia sufocá-la acidentalmente durante o sono, passara a colocá-la no berço.Se não tivesse dado ouvidos aos outros; se tivesse prestado mais atenção na disposição da coberta no berço; se tivesse conferido uma vez mais se sua bebê estava deitada direito; se não tivesse dormido tão profundamente. Despertara logo cedo, daquele sono pesado sentindo-se inquieta sem saber a razão, até dar-se conta de que sua filha não a tinha acordado com seu choro, querendo mamar. Ao olhar pelas grades do berço colocado junto a sua cama, ao reparar na estranha imobilidade dela sentiu que havia alguma coisa muito errada naquela cena.

Antes mesmo de sair da cama ela soube.Mas há momentos em que a mente se fecha ao conhecimento de coisas com as quais não pode lidar se quiser se manter integra. Vestira um jeans sobre a camisola, enrolara a filha no cobertor, acordara a mãe e fora para o pronto-socorro. Não pensara não se permitira pensar, mesmo com a sensação do corpinho imóvel nos braços. Só duas horas depois, somente quando a médica a olhara nos olhos e lhe dissera que sua filha estava morta, é que ela visualizou essa palavra em sua mente, associou-a a sua filha. Durante todo esse tempo houve um ruído de fundo, uma interferência no bloqueio em sua cabeça, e no interrogatório do assistente social, o desfile de se.Ela sabia que tinha respondido as perguntas daquele assistente social, tinha feito um passo-a-passo da rotina da noite anterior, mas não poderia repetir uma única palavra daquela conversa. Elas simplesmente tinham resvalado por seus ouvidos.Sua mente estivera muito ocupada tentando negar o que sabia ao mesmo tempo em que já começara o massacrante processo do desespero que tenta voltar no tempo e fazer tudo diferente, quando já é tarde demais.A moça, a médica, viera e dissera as palavras que desmantelavam sua vida.Anos e anos depois ainda conservaria o mesmo pensamento/sentimento que a assolara naquela hora: mesmo se tivesse mil vidas para viver, aquela era uma dor que sempre seria maior que tudo.Quando se sentou lá fora, no banco, começou a pensar que devia se matar. Naquele momento não via nenhuma razão para continuar com o esforço de se manter viva. Como ela poderia sequer tentar, se a sua vida tinha terminado em algum momento da noite anterior?Ela continuava se movendo, respirando, ouvindo e vendo. Mas todas essas coisas eram só funções mecânicas de um equipamento sem vitalidade.Por um instante teve a nítida sensação de que, de alguma forma, usara suas próprias mãos para rasgar alguma coisa dentro de si mesma. Foi quando percebeu que só se dava conta de que sua filha era sua essência, sua razão total e plena de viver, quando já não a tinha mais.Escorregara do banco para o chão, arranhando a superfície de cimento, sufocando. Não sabia, não sabia que era tanto assim que amava sua filha. Mesmo nos momentos em que pensara que nunca poderia amar ninguém mais do que amava sua menina, não sabia que a extensão desse amor era tão maior que englobava tudo, tudo.

Oh, ela sabia que seus sentimentos naquela hora, se postos em palavras, soariam como lugar-comum, chavão de romance barato. Mas ali, naquele piso de cimento, naquele instante, teria aceitado a morte com gratidão.

Nesse dia de despedida, sentada sob a luz de uma qualidade única que tem certos dias de abril, sentia que tinha de deixá-la ir, aquela moça destroçada caída no chão, procurando uma forma de morrer o mais imediatamente possível. Precisava deixá-la ir para que pudesse ir também. Aquele dia não fora sua hora, mas essa hora agora estava tão próxima que quase poderia experimentá-la.
Mas estava presa àquela moça que fora um dia. Pois aquela moça, afinal de contas, decidira viver.  

Em um momento ela estava fixando um pedaço rachado de cimento, desejando, se nada mais fosse possível, que o mundo deixasse de existir para que ela pudesse se dissolver no nada.Ela continuava sem saber quanto tempo durara esse momento. Sua mãe viera e a observara, calada, com tristeza e compreensão, sem se aproximar, parecendo tão perdida quanto ela. Sua irmã falara com ela, mas sua mãe tocara-lhe o braço levemente, transmitindo com esse gesto tudo que precisava ser dito.  Que ela precisava ficar sozinha agora, em silêncio. Que ela precisava de tempo para se familiarizar com aquela que seria sua companheira constante vida afora, a dor da perda de algo que não se podia perder.Tudo isso ela apreendera de forma difusa, a presença da mãe e da irmã, os olhares, o gesto, as intenções. A imagem mental que lhe ficara dessas coisas fora como de flocos diáfanos de alguma coisa que se desmancharia ao mais leve toque, flutuando pelo ar em volta, sendo levados pela brisa e dispersando-se.Não viu quando elas se foram, mas registrou a presença de um homem que dobrara a curva do canteiro adiante, a vira e ficara parado, um instante, com ar indeciso e depois voltara.
Ela acompanhara distraída o movimento dos pés dele e depois sua atenção se prendeu à sombra que as belas-emílias faziam no calçamento.

Agora no presente, voltou os olhos para o canteiro delas. Sim, ali estava a mesma sombra, que parecia dançar com o movimento das pétalas e das folhas contra o sol, uma sombra filtrada por uma luz perolada. Claro que não era possível que sombras brilhassem, mas essa era sua percepção. Exatamente como naquele dia tudo brilhava, mas esse brilho era de uma qualidade especial, como se a luz atravessasse os prismas de um cristal, que não feria os olhos, antes, os envolvia com uma luz cálida. Todas as cores, do céu, das árvores, dos variados matizes do verde das folhas, das flores, até o muro fronteiriço e a porta branca dos fundos, a cadeira onde estava, todas elas tinham adquirido um tom aveludado, e não exatamente mais intensas, mais como se pulsassem suavemente, como se cada coisa estivesse prenhe de uma vida acolhedora.
Guardara sempre o momento em que voltara para a vida.Fora quando se enlevara com a beleza das pétalas da flor, seu azul despretensioso, que parecia beber aquela luz incrível e com ela aspergir tudo em redor, generosamente.

Olhou em volta, levantou-se. Experimentou um agridoce sentimento. Sua filha se fora e ela sabia que nunca iria recuperar-se disso. Essa dor ficaria sempre, seria parte dela e em muitos momentos no futuro, sabia, seria ela toda.Mas havia algo naquela luz, uma força pungente, que a chamava, que exigia que vivesse. A beleza serena daquele dia era a contrapartida dos dias áridos e frios e da sucessão de dias que se iam amontoando na labuta do viver e do morrer. Encontrar essa luz, essa beleza em meio àquele ordálio foi como o náufrago que, por debater-se apavorado, quase não vê a âncora que lhe fora atirada.Ela se envergonhou de si mesma, da forma como permitira se engolfar naquele oceano de dor, e quase se deixar afundar, como se ela fora a primeira mãe no tempo a perder um filho. Não era contra alguma injustiça da vida que tinha de lutar para poder transpor esse abismo, era contra si mesma. Teria, de alguma forma, de recuperar a capacidade de seguir em frente. De aceitar. Faria da fraqueza, força. Reconheceu que era nada mais que um instante no tempo, nada mais que uma breve fagulha de vida. Por mais que doesse, tinha de aceitar que sua bebê fora um instante, uma fagulha ainda mais breves e que isso também fazia parte da vida.Mas não precisava ser religiosa para sentir que a essência de sua filha perduraria, tanto tempo quanto ela tivesse memória para abrigar o sentimento que lhe despertara naqueles efêmeros dois meses e meio.Antes de tê-la fora uma mulher com a têmpera de quem sempre fora filha, de certa forma uma menina crescida. Quando se tornara mãe descobrira o que todas as mulheres-meninas descobrem nessa hora: junto com o filho nasce uma força de aço temperada com ternura, uma disposição para, a modo de dizer, enfrentar o mundo com os dentes arreganhados num segundo e no segundo seguinte sorrir enleada pelo prazer de ter o filho ao seio.
Sua filha viera e se fora, mas deixara com ela essa força. A mesma que a ampararia daí em diante. Viveria para aceitar tudo que a vida lhe trouxesse.


E ela vivera. Casara-se, tivera um filho, enterrara a mãe. Separara-se, envelhecera, vira os netos nascerem e crescerem.  Seu filho lhe dera um lar, quando não podia mais viver sozinha. Tanto mais os anos passavam, mais trabalhoso era cuidar dela, bem o sabia.
Mas era tempo de ir-se. Por isso estava lá fora, apreciando aquele dia especial, chamando seu passado para unir-se com seu presente, trazendo sua filha para ainda mais perto de si; queria, na sua hora, ir com ela. Despedia-se da vida, sem arrependimentos e sem levar consigo o ressentimento de ter que partir. Morrer era, afinal de contas, tão parte da vida quanto a própria vida.



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