sábado, 30 de agosto de 2014

Penso. Logo, existo.



Uma pessoa me perguntou o que eu faria se descobrisse que Deus existe. 
Eu perguntei de volta como seria isso de descobrir que Deus existe, se acaso a pessoa estava pensando nesse "descobrir que Deus existe" em termos de alguma experiência que, como essa pessoa sabe muito bem, eu classificaria como algum tipo de alucinação, sonho ou coisa parecida.
Não, respondeu-me, seria de forma concreta, com todos os meus sentidos bem despertos e estando eu segura de estar em plena posse de minhas faculdades mentais. Exatamente, disse-me, como qualquer ato corriqueiro, atravessar a rua, pentear o cabelo, lavar a louça, acender um cigarro.Imagine, disse, que alguém bata à sua porta, você abre e lá está Deus.

Mas, eu retorqui de volta, se alguém me bate à porta e se apresenta como Deus, eu vou concluir que ou estou tratando com um doido ou com alguém que quer tirar onda com minha cara.
A pessoa me pediu que considerasse o seguinte: quando vejo uma árvore, sei que é uma árvore. Então, quando eu visse Deus, eu saberia que era Deus. Mas esse é o problema, insisti. Eu sei o que é uma árvore porque desde que me entendo por gente, eu vejo árvores. Em várias cores, formas e tamanhos. Eu naturalmente associo a palavra "árvore" a esses objetos porque esses objetos sempre estão à vista e assim foram designados. E se por acaso eu tivesse passado toda minha vida sem ver uma árvore, e alguém me dissesse que árvores existem, e as descrevesse, eu poderia duvidar disso somente até o momento em que alguém me mostrasse uma árvore. 
Então eu tenho uma referência para a palavra "árvore", mas não tenho uma referência para a palavra "Deus". A menos que consideremos, por exemplo, a Capela Sistina. Há um Deus retratado lá, mas se me aparece pela frente um cidadão de longas barbas grisalhas enrolado num tecido semi-transparente "sendo" Deus, vou concluir que um de nós dois fugiu do hospício.

A pessoa, começando a se irritar, me disse que tem referência para a palavra Deus, que para ela seria fácil reconhecer Deus, caso o visse, e, perguntou-me se por isso eu achava que ela fugira do hospício.
Respondi que não, não achava, mas isso era por que a pessoa nunca saíra por aí dizendo que se encontrara pessoalmente com Deus.
Perguntei que meios a pessoa teria para, no caso de encontrar alguém "sendo" Deus, o reconhecer como tal. E a pessoa respondeu-me que saberia por que "sentiria".
Ora,retorqui de volta, "sentiria" o quê? 
Enfaticamente a pessoa disse que "sentiria" Deus da mesma forma como, vendo uma árvore, ela "sente" que aquilo é uma árvore. Muito bem, eu disse, se você pode identificar Deus como identifica uma árvore, me mostre ele, tal como você pode me mostrar uma árvore. Não fiz essa proposta num espírito de desafio (ou, para ser totalmente honesta, não completamente, tentei aceitar o ponto de vista da pessoa) e não usei nenhum tom desaforado, mas tive de volta uma reação ainda mais irritada.

Por que eu era incapaz de sentir Deus, isso não significava que os outros o fossem também. Não seria mais honesto de minha parte, argumentou, que eu me perguntasse qual a razão de a maioria esmagadora das pessoas, em todos os tempos e lugares, acreditar em Deus, e se isso não fundamenta razoavelmente a existência dele, ao invés de confiar apenas na minha própria percepção? E essa minha percepção, continuou, não poderia ser mais o resultado de uma vaidade intelectual minha do que qualquer outra coisa?
Respondi-lhe que já trilhara esse caminho. Já estivera, por longo tempo, imersa nessas considerações, perscrutando a mim mesma com severidade. E que o grau de severidade se baseava no fato de considerar que posso tangenciar aos outros, mas nunca a mim mesma. Acrescentei que o argumento da "maioria esmagadora em todos o tempos e lugares" acreditarem em Deus, se significa alguma coisa é que é mais fácil colocar um "autor" como explicação para tudo que não sabemos quando o assunto é de onde viemos e para onde vamos, se é que vamos, quando morremos. As pessoas tendem a se contentar com explicações simples. Deus é uma explicação extremamente simples para questões muito difíceis. 

Fiz-lhe ver sua dificuldade em me descrever a forma como eu saberia que estava tratando com Deus. A pessoa respondeu que a dificuldade quem estava colocando era eu, ela o tinha feito da forma mais fácil possível. 

E nessa altura eu desisti da conversa, pois levá-la adiante resultaria em discussão acalorada.
Eu teria que dizer à pessoa que ela estava trapaceando a própria mente, com aquele argumento final e demonstrando exatamente o meu ponto. E a pessoa não ia gostar nada, nada disso.

Sendo que Deus nunca é uma experiência baseada em fatos e sua alegada existência nunca é algo passível de constatação concreta, como uma árvore, as pessoas têm uma extrema dificuldade de "provar" que o que dizem é verdade. 
"Provar" a existência de Deus é uma questão muito difícil. Então as pessoas apelam para o sentir, como explicação e essa é uma explicação fácil. 

Mas.

Como tudo que as pessoas têm para descrever sua experiência com Deus são seus sentimentos e como o sentir é uma forma de percepção sujeita a perturbações emocionais e mentais; como os sentimentos também estão sujeitos à mera vontade do auto-convencimento, as pessoas nunca terão condições suficientes para estabelecer que sua "experiência" é resultado de fato e não de alguma perturbação ou do auto-convencimento.

E esse é o tipo de argumentação que irrita as pessoas e acaba por me irritar também. 
Eu não vou às pessoas propondo-lhes que considerem a não-existência de Deus. Alguém sempre poderia perguntar se não é isso que estou fazendo quando escrevo a respeito. Mas não considero dessa forma. Há por aí zilhões de escritos sobre a alegada existência de Deus, mas eu posso ignorá-los. O contrário é igualmente verdadeiro. O que eu nunca faço é ir diretamente às pessoas e exigir sua atenção para minha proposição.
Então, quando uma pessoa faz isso comigo, eu espero como natural que ela esteja disposta a considerar minha posição a respeito do assunto, e não, como acontece sempre, reagir como se minha única motivação seja a ofensa pela ofensa. 

Receio que doravante minha convivência com essa pessoa ficará desagradável. Eu a irritei num ponto que lhe é muito sensível e ela, por seu lado, fez o mesmo comigo.
Ela tinha a intenção, desconfio, de me converter usando aquilo que me é mais caro, a racionalização e acaba que usei essa racionalização contra sua intenção.
De minha parte  tenho que admitir que estava num estado que se poderia chamar de pré-irritação. Num curto espaço de tempo me vi ás voltas com pessoas sustentando que para entrar em contato com esse bendito Deus é necessário primeiro abdicar do intelecto em favor do sentimento.
Uma delas de mim nada mais sabe que existo, mas a outra, eu supunha que me conhecesse um pouco melhor.

Paciência.



 


2 comentários:

  1. Shirley

    Que maravilha de texto.

    Deus é uma explicação extremamente simples para questões muito difíceis”.



    "Como tudo que as pessoas têm para descrever sua experiência com Deus são seus sentimentos e como o sentir é uma forma de percepção sujeita a perturbações emocionais e mentais; como os sentimentos também estão sujeitos à mera vontade do auto-convencimento, as pessoas nunca terão condições suficientes para estabelecer que sua "experiência" é resultado de fato e não de alguma perturbação ou do auto-convencimento.

    Discutir com certo tipo de pessoa como no caso esse “crente teimoso”, é muito desgastante e só dá certo se a gente abdicar do intelecto como você diz e concordar com ele dando a entender que enfim nos converteu, que é esse o objetivo de todos.

    Quem será essa pessoa?

    Abç

    ResponderExcluir
  2. Oi Ana
    Obrigada. Pois é, a gente até tenta levar numa boa, mas cansa...
    A pessoa é alguém que eu tinha como amiga. Agora, não sei mais....rsrsrs
    Abçs

    ResponderExcluir