domingo, 31 de agosto de 2014

Richard Dawkins, um...fanático?


Apesar de ser ateia a vida inteira, nunca procurei material de escritores ateus, tratando de ateísmo, por ter decidido que formaria meu entendimento sobre o assunto de forma a mais independente possível. Por esta razão, até uns três, quatro anos atrás eu desconhecia a existência de Richard Dawkins e foi de forma indireta que soube ser ele ateu, quando lia A Grande História da Evolução. 
Por ser ele um militante ateu, como soube quando procurei informações sobre ele, não o levei a sério. No meu entendimento, quem milita, milita por uma causa, uma ideologia e ateísmo não é uma causa, não é uma ideologia. Ideologias são matéria de crença e não vejo nada mais antagônico do ateísmo do que a crença em combater a crença. Para mim, ateísmo é tão somente não crer em deuses. A partir do momento em que a pessoa elege uma causa, uma ideologia, e passa a militar em nome dela, embora seja ateu de deuses, é crente na causa que elegeu e tudo bem. Mas, quando essa causa é o ateísmo, as coisas ficam no mínimo estranhas.
Ateus podem e devem se manifestar a respeito de como veem a crença e as religiões.
Mas sair pelo mundo "levando a palavra", tentando converter as pessoas ao ateísmo?  
Isso é profissão de fé. Fé entrelaçada ao ateísmo me soa ridículo e não levo a sério o que me soa ridículo.
Mas por esses dias, estava acompanhando uma renhida discussão num fórum, a respeito de uma publicação de Dawkins no Twitter, em que ele dizia ser imoral a proibição do aborto para quem o queira. Na verdade, não sei se ele escreveu mesmo isso, estou vendendo o peixe conforme o comprei e não me interessou ir atrás de verificar, já que esse, para mim, não é o ponto interessante.
Mais que interessante, foi preocupante observar seus seguidores.
Começando pelo fato de um ateu, na prática de disseminar o ateísmo pelo mundo, ter seguidores. 
Além de ateia sou liberal, significando  isto, entre outras coisas, que penso ser de direito inalienável das pessoas o exercício da crença. E isso nada tem a ver com o pretexto da crença usado como legitimação de violência e intolerância. Quando se trata de ateísmo versus crença, sou afeita à tolerância, a um laissez faire aplicado à convivência entre crentes e não crentes. Mesmo quando, como é o que volta e meia acontece, isso seja unilateral.
Então, é compreensível que tenha ficado incomodada com Richard Dawkins e com quem o secunda. 
Ainda estou lendo Deus, um delírio, mas assisti alguns vídeos dele, além de ler uma porção de coisas sobre ele, contra e a favor.
Até onde pude perceber, os principais argumentos de Dawkins contra as religiões são o o terrorismo fundamentalista e as guerras religiosas, a doutrinação de crianças e o possível entrave para o avanço da ciência, que seria provocado pelo aumento do poder das religiões através de uma maior disseminação das mesmas.
Bem. Dawkins é um zoólogo renomado, divulgador da ciência, famoso, bem articulado, com vários livros muito bem vendidos.
Eu sou ninguém. E mesmo assim acho que quando o assunto é a causa ateísta Dawkins está agindo como um fanático um intolerante e está errado.
Dawkins parece ter elegido para si a causa de salvar a humanidade das religiões. Quem deu a ele esse direito? Quem pediu a ele que o fizesse? 
Até o dia de hoje, por tudo que já observei, nunca houve um salvador da humanidade que não acabasse por ser também um tirano, um déspota, em maior ou menor grau. E não dá para ser déspota sendo tolerante. Dawkins quer acabar com as religiões. Nas palavras dele mesmo:
Meu grande sonho é a completa destruição de todas as religiões do mundo.
Não parece fazer parte das considerações dele que as pessoas queiram ter uma religião, uma crença, e que elas têm direito a isso. 
Quando adota essa posição, Dawkins fica bem parecido com fundamentalistas fanáticos que combate. 
É gente fanática assim que usa palavras como destruição
E é bem possível que esse fanatismo e intolerância de Dawkins estejam levando-o a uma fronteira entre o que ele pode ter entendido como boa intenção e a desonestidade intelectual.
Duas frases de Dawkins em um de seus vídeos me oferecem material para reflexão, mas não a reflexão que ele pretendeu.
Primeiro ele diz que:
Longe de estarem vencidos, militantes da fé estão em marcha no mundo todo, com consequências aterradoras.
 E complementa:
 Como cientista, me preocupo muito sobre como a fé prejudica a ciência.
O corolário dessa afirmação bem pode ser que Dawkins está dizendo que o avanço da fé pode vir a impedir o avanço da ciência.
Será essa uma proposição em total consonância com a realidade?
Para considerá-la devemos ter em mente que, desde o momento em que o ser humano se pôs sobre duas pernas, nunca mais parou de fazer ciência. E já houve longos períodos em que a religião foi dominante. Se formos ser totalmente honestos, foi no seio das instituições religiosas que teve início o grande salto científico que nos levou às viagens espaciais e à fissão do átomo.
E, até mesmo, àquilo que forneceu o grande questionamento sobre a origem da vida e sua evolução, contestando com bases sólidas a versão da religião sobre esses temas. Não nos esqueçamos de que Darwin era um homem de fé e Mendel era um monge.
Não é exato, então, nem honesto dizer que o avanço das religiões vá se tornar impeditivo para o avanço da ciência. 
Mesmo que chegássemos, hipoteticamente, a um ponto em que alguma religião fundamentalista se tornasse dominante em nível mundial, sempre haveria, como sempre houve, os outsiders. Uma coisa que Dawkins, até onde percebi, nunca faz é levar em conta a natureza humana. Não tenho dúvida nenhuma de que se a prática da ciência chegasse a ser proibida, haveria decerto alguém, ou vários "alguéns", que se lançaria a ela com ainda mais denodo. É da natureza humana desafiar proibições.
E, por mais desagradável que seja considerar, a ciência não oferece às pessoas o que as religiões oferecem. Goste-se ou não, não é possível estabelecer com a ciência a relação de pertencimento que a religião propicia. 
Quando Dawkins se diz preocupado com a doutrinação religiosa das crianças, que ele descreve como “um vírus que afeta os jovens, geração após geração”, eu fico me perguntando se ele está sendo deliberadamente desonesto, se está cego pelo próprio pensamento ou se é mesmo o caso de nunca considerar a natureza humana. 
Se não fosse a religião, a crença em deuses, seria outra coisa.
Na verdade, é outra coisa, quando não é a crença em deuses que prevalece e  a propósito disso faço uma rápida digressão.
Para quem está minimamente antenado com o que tem acontecido nas últimas décadas, há a difusão e aceitação de  fenômenos que quase chegam a ser dogmas, se não o forem de todo, que podem ser denominados, à falta de expressão melhor, o direito a ter direitos, e a tirania da igualdade, presentes no socialismo, que bem pesadas e medidas as coisas, é em si mesmo uma espécie de religião, estando tão disseminado nas sociedades que muitos nem se dão conta de que vivem sob seus vários preceitos. Um desses preceitos é a noção de que todos têm direito a tudo, mas não se vê o reparo, necessário, de que para todo direito há sua contrapartida, que é o dever. A tirania da igualdade têm efeitos ainda mais sérios. Em nome dela, anula-se o direito de se ser diferente, de se discordar.Juntando as duas coisas, tem-se que a pessoa pode ter direitos e ser igual, desde que sejam os direitos certos e que a igualdade seja a que foi determinada pelo grupo mais incisivo, mais barulhento. E ao fim e ao cabo, volta-se ao ponto de partida. Se não for a crença em deuses, é outra coisa, outro tipo de crença. 
O argumento de Dawkins, sobre o terrorismo fundamentalista e guerras religiosas é ainda mais capcioso.
Para que ele se sustentasse, seria necessário que nunca tivesse existido outro tipo de guerra que não as religiosas e que só existissem os terroristas religiosos, e além disso, que sua motivação fosse, apenas e exclusivamente, sua crença em algum deus.
Desnecessário discorrer sobre as guerras serem apenas de cunho religioso, ao longo da história. 
Quanto ao terrorismo, ele tem suas origens no século 17, por motivação política e sob essa motivação foi mais recorrente que o terrorismo religioso. E até mesmo esse tem um forte componente político. Os conflitos israelo-palestinos se dão muito mais em função de disputa de território do que em função da religião. Essa serve apenas para legitimar aquela.
Igualmente, os jihadistas no Iraque. 
E por trás de tudo isso, sempre e sempre a natureza humana. Não é a crença em deuses o que cria ódios, fanatismos guerras e intolerância. É a natureza humana quem cria essas coisas. A crença pode ser usada como meio para viabilizá-las e o deus da crença também serve para legitimá-las.
Há até uma graça nisso, irônica e involuntária. Ao deixar de lado o fundamental, que é a natureza humana, Dawkins acaba por conferir substância de realidade ao Deus que ele está combatendo como mito. Se ele deixa de lado Deus como expressão da natureza humana, Deus acaba sendo uma existência autônoma, externa ao ser humano.
E há uma diferença tremenda entre ateus que se expressam sobre a crença em deuses, expondo suas opiniões e alguém que, como Dawkins, usa sua posição de destaque para promover a causa do ateísmo. Já não bastasse a esquisitice de o ateísmo ser convertido em causa, quando se propõe a sair pelo mundo pregando o fim das religiões como solução para alguns dos males da humanidade, usando da manipulação factual, para dizer o mínimo, Dawkins permite que se duvide de sua idoneidade intelectual.
Mas, pode ser ainda pior que isso.A forma como ele coloca as coisas, fazendo da exceção a regra - e terroristas são a exceção e não a regra; obscurantistas religiosos são exceção, não a regra - para servir como argumento da necessidade da completa destruição das religiões, não o distingue em nada dos fanáticos religiosos. Faz parte do discurso desses fanáticos caracterizar como expressão do mal quem não comunga de suas crenças. No caso de Dawkins ainda é mais grave, pois da forma como age atribui a todos os seguidores de todas as religiões comportamentos que são de alguns. É mais grave por que Dawkins é uma pessoa esclarecida. Ou deveria ser.
Religiões nunca foram solução para os problemas da humanidade. Tampouco o ateísmo, convertido em causa, o será. 

Um rabi ironiza Dawkins como o “Novo Messias”, num dos vídeos. É possível que ele não esteja muito longe de ter enxergado em Dawkins o mesmo impulsionador que move os tradicionais messias e profetas das religiões: ter uma “mensagem” salvadora, que deve ser levada aos quatro cantos do mundo, para com ela evangelizar o infiel, nem que seja contra as convicções originais deste infiel.
Será o caso do igual que reconhece seu igual?



sábado, 30 de agosto de 2014

Penso. Logo, existo.



Uma pessoa me perguntou o que eu faria se descobrisse que Deus existe. 
Eu perguntei de volta como seria isso de descobrir que Deus existe, se acaso a pessoa estava pensando nesse "descobrir que Deus existe" em termos de alguma experiência que, como essa pessoa sabe muito bem, eu classificaria como algum tipo de alucinação, sonho ou coisa parecida.
Não, respondeu-me, seria de forma concreta, com todos os meus sentidos bem despertos e estando eu segura de estar em plena posse de minhas faculdades mentais. Exatamente, disse-me, como qualquer ato corriqueiro, atravessar a rua, pentear o cabelo, lavar a louça, acender um cigarro.Imagine, disse, que alguém bata à sua porta, você abre e lá está Deus.

Mas, eu retorqui de volta, se alguém me bate à porta e se apresenta como Deus, eu vou concluir que ou estou tratando com um doido ou com alguém que quer tirar onda com minha cara.
A pessoa me pediu que considerasse o seguinte: quando vejo uma árvore, sei que é uma árvore. Então, quando eu visse Deus, eu saberia que era Deus. Mas esse é o problema, insisti. Eu sei o que é uma árvore porque desde que me entendo por gente, eu vejo árvores. Em várias cores, formas e tamanhos. Eu naturalmente associo a palavra "árvore" a esses objetos porque esses objetos sempre estão à vista e assim foram designados. E se por acaso eu tivesse passado toda minha vida sem ver uma árvore, e alguém me dissesse que árvores existem, e as descrevesse, eu poderia duvidar disso somente até o momento em que alguém me mostrasse uma árvore. 
Então eu tenho uma referência para a palavra "árvore", mas não tenho uma referência para a palavra "Deus". A menos que consideremos, por exemplo, a Capela Sistina. Há um Deus retratado lá, mas se me aparece pela frente um cidadão de longas barbas grisalhas enrolado num tecido semi-transparente "sendo" Deus, vou concluir que um de nós dois fugiu do hospício.

A pessoa, começando a se irritar, me disse que tem referência para a palavra Deus, que para ela seria fácil reconhecer Deus, caso o visse, e, perguntou-me se por isso eu achava que ela fugira do hospício.
Respondi que não, não achava, mas isso era por que a pessoa nunca saíra por aí dizendo que se encontrara pessoalmente com Deus.
Perguntei que meios a pessoa teria para, no caso de encontrar alguém "sendo" Deus, o reconhecer como tal. E a pessoa respondeu-me que saberia por que "sentiria".
Ora,retorqui de volta, "sentiria" o quê? 
Enfaticamente a pessoa disse que "sentiria" Deus da mesma forma como, vendo uma árvore, ela "sente" que aquilo é uma árvore. Muito bem, eu disse, se você pode identificar Deus como identifica uma árvore, me mostre ele, tal como você pode me mostrar uma árvore. Não fiz essa proposta num espírito de desafio (ou, para ser totalmente honesta, não completamente, tentei aceitar o ponto de vista da pessoa) e não usei nenhum tom desaforado, mas tive de volta uma reação ainda mais irritada.

Por que eu era incapaz de sentir Deus, isso não significava que os outros o fossem também. Não seria mais honesto de minha parte, argumentou, que eu me perguntasse qual a razão de a maioria esmagadora das pessoas, em todos os tempos e lugares, acreditar em Deus, e se isso não fundamenta razoavelmente a existência dele, ao invés de confiar apenas na minha própria percepção? E essa minha percepção, continuou, não poderia ser mais o resultado de uma vaidade intelectual minha do que qualquer outra coisa?
Respondi-lhe que já trilhara esse caminho. Já estivera, por longo tempo, imersa nessas considerações, perscrutando a mim mesma com severidade. E que o grau de severidade se baseava no fato de considerar que posso tangenciar aos outros, mas nunca a mim mesma. Acrescentei que o argumento da "maioria esmagadora em todos o tempos e lugares" acreditarem em Deus, se significa alguma coisa é que é mais fácil colocar um "autor" como explicação para tudo que não sabemos quando o assunto é de onde viemos e para onde vamos, se é que vamos, quando morremos. As pessoas tendem a se contentar com explicações simples. Deus é uma explicação extremamente simples para questões muito difíceis. 

Fiz-lhe ver sua dificuldade em me descrever a forma como eu saberia que estava tratando com Deus. A pessoa respondeu que a dificuldade quem estava colocando era eu, ela o tinha feito da forma mais fácil possível. 

E nessa altura eu desisti da conversa, pois levá-la adiante resultaria em discussão acalorada.
Eu teria que dizer à pessoa que ela estava trapaceando a própria mente, com aquele argumento final e demonstrando exatamente o meu ponto. E a pessoa não ia gostar nada, nada disso.

Sendo que Deus nunca é uma experiência baseada em fatos e sua alegada existência nunca é algo passível de constatação concreta, como uma árvore, as pessoas têm uma extrema dificuldade de "provar" que o que dizem é verdade. 
"Provar" a existência de Deus é uma questão muito difícil. Então as pessoas apelam para o sentir, como explicação e essa é uma explicação fácil. 

Mas.

Como tudo que as pessoas têm para descrever sua experiência com Deus são seus sentimentos e como o sentir é uma forma de percepção sujeita a perturbações emocionais e mentais; como os sentimentos também estão sujeitos à mera vontade do auto-convencimento, as pessoas nunca terão condições suficientes para estabelecer que sua "experiência" é resultado de fato e não de alguma perturbação ou do auto-convencimento.

E esse é o tipo de argumentação que irrita as pessoas e acaba por me irritar também. 
Eu não vou às pessoas propondo-lhes que considerem a não-existência de Deus. Alguém sempre poderia perguntar se não é isso que estou fazendo quando escrevo a respeito. Mas não considero dessa forma. Há por aí zilhões de escritos sobre a alegada existência de Deus, mas eu posso ignorá-los. O contrário é igualmente verdadeiro. O que eu nunca faço é ir diretamente às pessoas e exigir sua atenção para minha proposição.
Então, quando uma pessoa faz isso comigo, eu espero como natural que ela esteja disposta a considerar minha posição a respeito do assunto, e não, como acontece sempre, reagir como se minha única motivação seja a ofensa pela ofensa. 

Receio que doravante minha convivência com essa pessoa ficará desagradável. Eu a irritei num ponto que lhe é muito sensível e ela, por seu lado, fez o mesmo comigo.
Ela tinha a intenção, desconfio, de me converter usando aquilo que me é mais caro, a racionalização e acaba que usei essa racionalização contra sua intenção.
De minha parte  tenho que admitir que estava num estado que se poderia chamar de pré-irritação. Num curto espaço de tempo me vi ás voltas com pessoas sustentando que para entrar em contato com esse bendito Deus é necessário primeiro abdicar do intelecto em favor do sentimento.
Uma delas de mim nada mais sabe que existo, mas a outra, eu supunha que me conhecesse um pouco melhor.

Paciência.



 


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Por toda a vida e além.


Estava ali para se despedir. Podia ser que não partisse hoje, talvez nem amanhã, possivelmente não fosse ainda na próxima semana, mas nada provável além disso. E tinha que dizer adeus hoje, da forma adequada. Duvidava muito, quase tinha certeza, que esse abril produzisse uma outra manhã tão gloriosa, tão propícia para lembrar. Também, com toda certeza não teria esse precioso tempo sozinha outra vez, antes de ir.

Precisava de estar sozinha. A sua era uma despedida do tipo que requer rememoração, resgate do já vivido, encontro consigo mesmo. Essas coisas exigem solidão e silêncio. E privacidade, principalmente privacidade.
Eles tinham boa intenção, sim, mas eram tão invasivos! Invasivos e um nadinha insensíveis, a bem da verdade. Para eles, ela era apenas a velha
Sorriu, pesarosa. Depois de tudo, no fim você se torna um ente amorfo, definido por uma palavra. É a palavra certa, é claro, velha, mas ser velha é uma condição que tira tanto da pessoa. Tira-lhe o corpo e deixa no lugar um amontoado de ossos alquebrados envoltos num saco amarfanhado de pele. Tira-lhe a visão e deixa no lugar uns olhos remelentos que mal dão conta de enxergar a dez centímetros o que antes era visto a metros de distância. Tira-lhe a audição que não exige esforço consciente e deixa no lugar uns ecos abafados que precisam vir da direção e distância certas, senão são apenas bocas mexendo e ruídos envoltos em algodão. Tira até o direito de ser vista como uma pessoa, uma mulher. É, só, a velha. 

Havia momentos em que chegava a se surpreender, quando se dava conta de que a entidade, a velha, que era tratada com excessiva polidez e alguma condescendência, que era alimentada com comidas sobre as quais não fora consultada, que era deixada vários períodos sentada ou deitada num canto, sozinha mas nunca realmente só;  não apenas se surpreendia, mas se assustava com a compreensão de que essa entidade era ela. Talvez por isso preferisse sempre os períodos de negligência benevolente, nos quais, já tendo sido lavada, alimentada e entretida com aquelas conversas inconsequentes meio gritadas e regadas à profusão de sorrisos que ela não tinha bem certeza de serem totalmente sinceros. Depois a deixavam, mas sempre havia alguém por perto.

Ao menos nesses momentos ela podia voltar-se tranquilamente para si mesma, olhar-se dentro de sua mente. Ali ela nunca era a velha. Era o que era, o que sempre fora e continuava sendo, embora ninguém mais se desse conta disso: uma mulher.
Sobressaltou-se, e não pela primeira vez, com a possibilidade de estar alimentando sentimentos de rancor e ingratidão para com eles.
Conscientemente não se sentia assim, mas sabia que nem sempre o que está à superfície é reflexo fiel do que nos vai nas profundezas da mente. Teve um instante de divertimento: sua mãe teria dito da alma.
Não, ela era grata, profundamente grata a eles. Sabia muito bem que poderia ter sido tudo diferente e indizivelmente pior. Apenas, eles não tinham culpa de ela ter-se tornado velha; não tinham como saber o que é esse inverno da vida, inverno sem perspectiva de primavera. E na maior parte do tempo, ela lidava bem com isso. Mas não se negava os momentos de melancolia pela perda da pujança de viver que é permitida por um corpo jovem, e o estranhamento com a dicotomia de sentir-se uma em sua mente, sabendo-se outra em seu corpo.

Em sua mente ela ainda era a essência de mulher que definira para si mesma numa outra manhã como aquela, muito tempo atrás. Uma mulher na plenitude da vida. De todas as formas possíveis para ela.
Fora naquela manhã que ela se vira frente a frente com o rumo que deveria dar à sua vida; fora naquela manhã que ela aprendera mais sobre si mesma que em todos os outros trinta e dois anos anteriores e que se surpreendera com a forma como a vida encontra formas de seguir adiante mesmo quando se tem certeza de que não vale mais a pena viver.

Saíra daquela sala tornada subitamente assombrada, povoada pelo espectro de uma dor que se dividia em miríades de ataques de nunca mais, se reagrupavam em sólida massa de isso não está acontecendo e a golpeavam com a velocidade de um bólido desgovernado, vindo de todos os lados: a consciência de uma perda tão irreparável que sentia tanta necessidade de negar-se como se tem necessidade de respirar. 

Uma moça lhe perguntara se queria usar a capela do hospital e em seguida recuara um passo, assustada. Não compreendeu naquela hora; depois, deu-se conta de que o que assustara a moça fora o absoluto vazio repleto de dor, que transbordava de seus olhos.

Agradecera e recusara. Não por nenhum pensamento consciente, mas porque suas pernas tinham esquecido como se mover. Em seguida notou sua mãe e sua irmã, insistindo com ela para irem à capela. Essa foi a primeira surpresa em relação a si mesma. Que pudesse, naquele momento, irritar-se daquela forma. Zangou-se com as duas por ter pensado que ou elas estavam se aproveitando daquela sua dor medonha, da sua fragilidade, para leva-la a algo que sabiam, repudiava, ou nunca a tinham realmente levado a sério.Com a raiva vieram as pernas. Foi para fora. Era de manhã, muito cedo ainda. Sentou-se num banco, não sabia o que fazer em seguida. Sua filha, sua bebê, morrera. Ontem ela estava lá, na sala de casa, deitada no cobertor, usando um sorriso de boca desdentada tão bonito que dava um aperto no coração. Hoje ela era algo que sua mãe não podia considerar, sob pena de enlouquecer: era um não ser. Era um nunca mais se estendendo pela vida afora. Era um vazio locupletado de culpa, de se, de uma atordoada incompreensão.Ela a pusera no berço à noite, como vinha fazendo nas últimas três semanas. Aos dois meses e meio, todos diziam que devia acostumá-la nessa idade a dormir sozinha ou nunca mais o conseguiria. Até então ambas dormiam namesma cama e a menina mamava praticamente a noite toda. Por que isso a esgotava durante o dia e por ter ficado com medo, quando lhe disseram que era perigoso para o bebê dormirem juntas, que ela poderia sufocá-la acidentalmente durante o sono, passara a colocá-la no berço.Se não tivesse dado ouvidos aos outros; se tivesse prestado mais atenção na disposição da coberta no berço; se tivesse conferido uma vez mais se sua bebê estava deitada direito; se não tivesse dormido tão profundamente. Despertara logo cedo, daquele sono pesado sentindo-se inquieta sem saber a razão, até dar-se conta de que sua filha não a tinha acordado com seu choro, querendo mamar. Ao olhar pelas grades do berço colocado junto a sua cama, ao reparar na estranha imobilidade dela sentiu que havia alguma coisa muito errada naquela cena.

Antes mesmo de sair da cama ela soube.Mas há momentos em que a mente se fecha ao conhecimento de coisas com as quais não pode lidar se quiser se manter integra. Vestira um jeans sobre a camisola, enrolara a filha no cobertor, acordara a mãe e fora para o pronto-socorro. Não pensara não se permitira pensar, mesmo com a sensação do corpinho imóvel nos braços. Só duas horas depois, somente quando a médica a olhara nos olhos e lhe dissera que sua filha estava morta, é que ela visualizou essa palavra em sua mente, associou-a a sua filha. Durante todo esse tempo houve um ruído de fundo, uma interferência no bloqueio em sua cabeça, e no interrogatório do assistente social, o desfile de se.Ela sabia que tinha respondido as perguntas daquele assistente social, tinha feito um passo-a-passo da rotina da noite anterior, mas não poderia repetir uma única palavra daquela conversa. Elas simplesmente tinham resvalado por seus ouvidos.Sua mente estivera muito ocupada tentando negar o que sabia ao mesmo tempo em que já começara o massacrante processo do desespero que tenta voltar no tempo e fazer tudo diferente, quando já é tarde demais.A moça, a médica, viera e dissera as palavras que desmantelavam sua vida.Anos e anos depois ainda conservaria o mesmo pensamento/sentimento que a assolara naquela hora: mesmo se tivesse mil vidas para viver, aquela era uma dor que sempre seria maior que tudo.Quando se sentou lá fora, no banco, começou a pensar que devia se matar. Naquele momento não via nenhuma razão para continuar com o esforço de se manter viva. Como ela poderia sequer tentar, se a sua vida tinha terminado em algum momento da noite anterior?Ela continuava se movendo, respirando, ouvindo e vendo. Mas todas essas coisas eram só funções mecânicas de um equipamento sem vitalidade.Por um instante teve a nítida sensação de que, de alguma forma, usara suas próprias mãos para rasgar alguma coisa dentro de si mesma. Foi quando percebeu que só se dava conta de que sua filha era sua essência, sua razão total e plena de viver, quando já não a tinha mais.Escorregara do banco para o chão, arranhando a superfície de cimento, sufocando. Não sabia, não sabia que era tanto assim que amava sua filha. Mesmo nos momentos em que pensara que nunca poderia amar ninguém mais do que amava sua menina, não sabia que a extensão desse amor era tão maior que englobava tudo, tudo.

Oh, ela sabia que seus sentimentos naquela hora, se postos em palavras, soariam como lugar-comum, chavão de romance barato. Mas ali, naquele piso de cimento, naquele instante, teria aceitado a morte com gratidão.

Nesse dia de despedida, sentada sob a luz de uma qualidade única que tem certos dias de abril, sentia que tinha de deixá-la ir, aquela moça destroçada caída no chão, procurando uma forma de morrer o mais imediatamente possível. Precisava deixá-la ir para que pudesse ir também. Aquele dia não fora sua hora, mas essa hora agora estava tão próxima que quase poderia experimentá-la.
Mas estava presa àquela moça que fora um dia. Pois aquela moça, afinal de contas, decidira viver.  

Em um momento ela estava fixando um pedaço rachado de cimento, desejando, se nada mais fosse possível, que o mundo deixasse de existir para que ela pudesse se dissolver no nada.Ela continuava sem saber quanto tempo durara esse momento. Sua mãe viera e a observara, calada, com tristeza e compreensão, sem se aproximar, parecendo tão perdida quanto ela. Sua irmã falara com ela, mas sua mãe tocara-lhe o braço levemente, transmitindo com esse gesto tudo que precisava ser dito.  Que ela precisava ficar sozinha agora, em silêncio. Que ela precisava de tempo para se familiarizar com aquela que seria sua companheira constante vida afora, a dor da perda de algo que não se podia perder.Tudo isso ela apreendera de forma difusa, a presença da mãe e da irmã, os olhares, o gesto, as intenções. A imagem mental que lhe ficara dessas coisas fora como de flocos diáfanos de alguma coisa que se desmancharia ao mais leve toque, flutuando pelo ar em volta, sendo levados pela brisa e dispersando-se.Não viu quando elas se foram, mas registrou a presença de um homem que dobrara a curva do canteiro adiante, a vira e ficara parado, um instante, com ar indeciso e depois voltara.
Ela acompanhara distraída o movimento dos pés dele e depois sua atenção se prendeu à sombra que as belas-emílias faziam no calçamento.

Agora no presente, voltou os olhos para o canteiro delas. Sim, ali estava a mesma sombra, que parecia dançar com o movimento das pétalas e das folhas contra o sol, uma sombra filtrada por uma luz perolada. Claro que não era possível que sombras brilhassem, mas essa era sua percepção. Exatamente como naquele dia tudo brilhava, mas esse brilho era de uma qualidade especial, como se a luz atravessasse os prismas de um cristal, que não feria os olhos, antes, os envolvia com uma luz cálida. Todas as cores, do céu, das árvores, dos variados matizes do verde das folhas, das flores, até o muro fronteiriço e a porta branca dos fundos, a cadeira onde estava, todas elas tinham adquirido um tom aveludado, e não exatamente mais intensas, mais como se pulsassem suavemente, como se cada coisa estivesse prenhe de uma vida acolhedora.
Guardara sempre o momento em que voltara para a vida.Fora quando se enlevara com a beleza das pétalas da flor, seu azul despretensioso, que parecia beber aquela luz incrível e com ela aspergir tudo em redor, generosamente.

Olhou em volta, levantou-se. Experimentou um agridoce sentimento. Sua filha se fora e ela sabia que nunca iria recuperar-se disso. Essa dor ficaria sempre, seria parte dela e em muitos momentos no futuro, sabia, seria ela toda.Mas havia algo naquela luz, uma força pungente, que a chamava, que exigia que vivesse. A beleza serena daquele dia era a contrapartida dos dias áridos e frios e da sucessão de dias que se iam amontoando na labuta do viver e do morrer. Encontrar essa luz, essa beleza em meio àquele ordálio foi como o náufrago que, por debater-se apavorado, quase não vê a âncora que lhe fora atirada.Ela se envergonhou de si mesma, da forma como permitira se engolfar naquele oceano de dor, e quase se deixar afundar, como se ela fora a primeira mãe no tempo a perder um filho. Não era contra alguma injustiça da vida que tinha de lutar para poder transpor esse abismo, era contra si mesma. Teria, de alguma forma, de recuperar a capacidade de seguir em frente. De aceitar. Faria da fraqueza, força. Reconheceu que era nada mais que um instante no tempo, nada mais que uma breve fagulha de vida. Por mais que doesse, tinha de aceitar que sua bebê fora um instante, uma fagulha ainda mais breves e que isso também fazia parte da vida.Mas não precisava ser religiosa para sentir que a essência de sua filha perduraria, tanto tempo quanto ela tivesse memória para abrigar o sentimento que lhe despertara naqueles efêmeros dois meses e meio.Antes de tê-la fora uma mulher com a têmpera de quem sempre fora filha, de certa forma uma menina crescida. Quando se tornara mãe descobrira o que todas as mulheres-meninas descobrem nessa hora: junto com o filho nasce uma força de aço temperada com ternura, uma disposição para, a modo de dizer, enfrentar o mundo com os dentes arreganhados num segundo e no segundo seguinte sorrir enleada pelo prazer de ter o filho ao seio.
Sua filha viera e se fora, mas deixara com ela essa força. A mesma que a ampararia daí em diante. Viveria para aceitar tudo que a vida lhe trouxesse.


E ela vivera. Casara-se, tivera um filho, enterrara a mãe. Separara-se, envelhecera, vira os netos nascerem e crescerem.  Seu filho lhe dera um lar, quando não podia mais viver sozinha. Tanto mais os anos passavam, mais trabalhoso era cuidar dela, bem o sabia.
Mas era tempo de ir-se. Por isso estava lá fora, apreciando aquele dia especial, chamando seu passado para unir-se com seu presente, trazendo sua filha para ainda mais perto de si; queria, na sua hora, ir com ela. Despedia-se da vida, sem arrependimentos e sem levar consigo o ressentimento de ter que partir. Morrer era, afinal de contas, tão parte da vida quanto a própria vida.



segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Gigolô de Defunto.



Há momentos (muitos) em que o Brasil me cansa e me desanima. Este é um deles.

Até a manhã do dia 13 de agosto passado, Eduardo Campos era um ilustre desconhecido para uma grande parte dos brasileiros. Nas pesquisas de intenção de votos para presidente, ele contava 8%, bem atrás dos dois mais cotados. Marina Silva era sua candidata a vice. Então veio o desastre aéreo.

Eduardo Campos conseguiu o que buscava, tornar-se conhecido no país inteiro, mas isso para ele não adianta de mais nada.

Para Marina Silva, no entanto...Significou tudo. Praticamente do dia para a noite ela tinha 21% de intenções de votos. Na próxima pesquisa não será surpresa se esse percentual aumentar.

Há uma questão aí a ser ponderada. De onde estão saindo esses votos? Se ela permanecer no patamar atual, de 21%, significa que tudo continua mais ou menos como em 2010. quando ela conseguiu cerca de 19% dos votos. Se aumentar, em parte será pela reação das pessoas à lama que escorre da política brasileira, em parte pela comoção causada pela morte de Eduardo Campos.

E é aí  que esse Brasil me cansa e desanima.
Se Eduardo Campos tivesse morrido de um enfarte, continuaria sendo o ilustre desconhecido.
Da forma como foi, tornou-se mártir e herói que salvaria a Pátria e sua morte colocou Marina Silva em evidência outra vez.
Que povo é esse que está sempre à cata de mártires e salvadores da Pátria?
Já houve Getúlio, Tancredo e agora é Campos. 
Marina Silva é aquela que vai carregar a "mensagem" de Campos. Qual era mesmo a mensagem? 
Será que essa porção de eleitores sabe? Duvido muito.
E Marina, os eleitores dela sabem o que ela pretende fazer de útil, bom e necessário para o Brasil?
Duvido muito.
Que tipo de povo é esse que se contenta com frases sem sentido, só por que são pronunciadas com um ar místico?

Que tipo de povo é esse que diz estar cansado da sujeira na política mas quer votar numa mulher que é fundadora do PT, que foi petista por 30 anos, que enquanto era ministra do governo do PT não disse uma única palavra de condenação sobre a quadrilha do Mensalão? 

Que tipo de povo é esse que acredita nela, quando diz que é contra a política, mas faz política 24 horas por dia, que praticamente respira política?

Que tipo de povo é esse que não procura se informar sobre o que Marina Silva já fez de fato enquanto foi senadora  e ministra? A resposta, para quem não sabe, é nada, mas quem está preocupado com isso? Não os brasileiros.

Esses mesmos brasileiros não sabem que Marina Silva é totalmente a favor de invasores de terra e de propriedades urbanas?  Se sabem , são a favor dos invasores, são a favor de que um bando de oportunistas tomem propriedades alheias, enquanto esses mesmos brasileiros se matam de trabalhar. Ou talvez queiram ser também invasores, quem sabe?

Se se derem ao trabalho de pesquisar, os brasileiros descobrirão que a única razão de Marina Silva ter-se tornado conhecida foi se aproveitar do assassinato de Chico Mendes. Agora faz o mesmo com Eduardo Campos.
Outro dia vi na internet uma expressão a respeito de Marina Silva que a define perfeitamente:

Gigolô de defunto.