segunda-feira, 17 de março de 2014

A Quimera no Espelho.



Leio que um vereador do município de Antônio Prado, no Rio Grande do Sul  exigiu, durante sessão da câmara a exoneração de uma funcionária que manifestou publicamente ser ateia.
É em situações como essa que me vem à mente os crentes (e muitos não crentes também) que usam o termo “neoateu” para referir-se a ateus que se manifestam a respeito de coisas como Deus, fé, religião.
Esse termo, neoateu, esconde uma série de reclamações e embustes de crentes e dos ateus que se querem “moderados”, mas que são apenas subservientes à condescendência dos crentes no que respeita ao “direito” de não se professar crença alguma.
As aspas na palavra direito remetem à citada condescendência: sendo os crentes maioria, consideram a existência de não crentes uma anomalia que deve ser mantida o mais oculta possível. Em outras palavras, não se trata de direito, mas de favor.
Uma reclamação típica dessa gente versa sobre a desnecessidade de ateus se dedicarem a falar e escrever sobre algo em que não acreditam.
O subtexto aí é: ateus que manifestam publicamente as razões da sua não crença são intolerantes radicais cujas intenções são suprimir o direito a crença e exterminar todas as formas e práticas da mesma, substituindo o sistema de valores cristãos pela imposição do sistema de valores seculares, o qual inevitavelmente levará à dissolução da civilização ocidental.
Sobre isso apenas uma coisa pode ser dita, se a intenção é preservar a propriedade dos fatos:
A todo aquele que queira sustentar a veracidade da autoria cristã dos valores morais vigentes na civilização ocidental solicita-se que demonstre com provas a inexistência de tais valores e de sua prática antes do advento do cristianismo. Simples assim.
Aduzindo que cristãos vivem, na prática, de acordo com o sistema secular de valores dos quais são herdeiros e representantes tanto quanto os ateus.

A alegação referente às intenções dos ateus requer uma explanação mais ampla, começando pela definição do que seja um ateu, tanto na acepção mais direta quanto numa perspectiva mais abrangente.
A primeira definição remete simplesmente àquele ou àquela que não creem na existência de deuses quaisquer. Idealmente a coisa deveria encerrar-se nisso: pessoas que creem em um deus e pessoas que não creem.
Sabemos todos que a questão não é simples e inofensiva assim, como querem fazer parecer os que reclamam dos ateus falando e escrevendo a respeito de crenças e afins. 
Ou a funcionária da prefeitura de Antônio Prado não estaria sendo punida por dizer que não crê no deus cristão, sendo esse caso apenas um entre muitos e vários tipos de intolerância ao não crente. Ou um apresentador de programa sensacionalista de televisão, diga-se de passagem, com poder de influenciar uma camada significativa da população mais inculta e, portanto mais suscetível à manipulação ideológica, não associaria a imagem de criminosos perigosos com ateus.
Crentes advogam que vem do cristianismo valores como aceitação e tolerância, num exercício de desonestidade intelectual e ideológico flagrante.
É inimaginável que haja aceitação e tolerância por parte dos cristãos se ateus decidirem visitar suas casas e tentar convencê-los a se tornarem ateus, ou que estes comprem horários em emissoras de rádio e televisão ou que adquiram concessões dos mesmos para difundir o ateísmo.
Por outro lado o crente entende que é perfeitamente aceitável que um apologista cristão não apenas aborde um ateu em casa como ainda que se comporte de forma insistente caso receba uma negativa, afinal ele, apologista, está seguindo os ditames de sua fé, trabalhando para difundir a mesma.
Se o ateu expressa seu aborrecimento e até raiva com esse comportamento, o entendimento não é, como seria natural, de que ele está reagindo a uma intromissão indevida e a uma imposição de algo sobre quê já houve longo tempo de reflexão e estudo para que viesse a ser rejeitado; ele é visto como agressivo, mal educado, intolerante.
Em resumo: ateus não devem se expressar quando o assunto trata de suas razões para não crer em deuses e não devem expressar desagrado quando forem abordados por pessoas inconvenientes e mal educadas cuja única razão para estar amolando outra pessoa é o entendimento da maioria crente de que um dos seus tem direito a incomodar, apenas porque crê. Falar em aceitação e tolerância cristã é mais que uma piada de mau gosto, é mentira, pura e simplesmente.

Outro exemplo de mentira e também de manipulação ideológica por parte de crentes em relação a ateus trata da associação destes aos partidários do Socialismo. Esta é uma coisa que sempre é oportuna dizer: socialistas (ou como são mais conhecidos, comunistas) não são ateus rigorosamente falando. Eles também têm sua religião, que é o Socialismo. 
O verdadeiro ateu é uma pessoa extremamente cética em relação a qualquer ideologia.
Nem é necessário um estudo aprofundado para se perceber que assim como o Cristianismo tem na figura de Cristo a base de sua ideologia, adaptada embora segundo as conveniências de lugar e tempo, os crentes do Socialismo também a têm na figura de Karl Marx, e Joseph Schumpeter exprimiu isso de maneira ideal: 

Em certo e importante sentido, o marxismo é uma religião. Em primeiro lugar, proporciona, ao crente, um sistema de fins últimos que envolvem o significado da vida e constituem critérios absolutos para o julgamento de acontecimentos e ações. Em segundo lugar, apresenta um guia para tais fins, guia que implica um plano de salvação e a indicação dos males dos quais a humanidade, ou parte escolhida, será salva. Podemos acrescentar: o socialismo marxista pertence ao subgrupo que promete o paraíso neste lado do mundo.
Schumpeter, Joseph, A. Capitalismo, Socialismo e Democracia, p.23. 


Quando um cristão coloca como sinônimos comunistas e ateus, está revelando algumas coisas sobre si mesmo. Num primeiro caso, que é um desses incultos preguiçosos que se contentam com o ouvir dizer. Esse tipo faz parte da maioria.
Há uma minoria, contudo que associa ateus com comunistas de forma deliberada, no intuito de apresentar o ateu como a pior coisa que pode acontecer para uma sociedade, já que comunistas contam entre suas práticas o assassinato de milhões de pessoas e a degradação do ser humano pela privação material e de direitos fundamentais. Aproveitam-se claro do fato de que a imensa maioria de comunistas é ateia do deus cristão, embora haja aqueles que conseguem ser devotos das duas ideologias, vide Frei Leonardo Boff e os adeptos da Teologia da Libertação.
Comunistas combatem o cristianismo não por serem ateus do deus cristão, mas por identificarem em seus seguidores um obstáculo à implantação de sua própria religião.
Há uma minoria de cristãos suficientemente informados para conhecer esses fatos; quando essa minoria apresenta o ateu como sinônimo de comunista não está defendendo sua fé, está, por meios desonestos, mentirosos, tentando calar àqueles a quem, por princípio, não reconhece direito de manifestação e mais que isso, tem medo dessa manifestação.

Em termos práticos o Cristianismo e o Socialismo são faces da mesma moeda, expurgadas as firulas filosóficas com as quais cada qual reveste sua essência autoritária.
Antes de “salvarem” o indivíduo, precisam anular sua capacidade de pensar por si próprio; precisam primeiro solapar qualquer base de autoconfiança figurando o indivíduo como sendo ao mesmo tempo vítima e produto de algo mal, seja esse mal o pecado original ou o sistema burguês-capitalista. Até na forma de tratar a divergência se assemelham e pelas mesmas razões. O divergente é movido por maldade, é movido pelo desejo de destruição pela destruição e precisa ser calado. É um inimigo.
Um método comum a ambos é bradar incansavelmente pela “igualdade” entre os seres humanos, mentindo descaradamente que esta “igualdade” seja realizável. Cada um em sua seara se apresenta como o único guia aceitável e autorizado para conduzir os seres humanos à redenção, desde que haja cega e irrestrita obediência aos comandos.
Têm ambos o vezo de usar meias verdades, mistificações ou inverdades completas para caracterizar quem se lhes opõe.
Não deixa, portanto, de ter uma graça irônica que certos cristãos acusem todos os ateus de serem comunistas, dado que eles sim têm muito mais afinidade com comunistas.
Só faz uso de mentiras, embustes e abuso de poder contra os que divergem aqueles que têm medo.
Muitos crentes tem medo de ateus, não por qualquer ameaça física que pressintam ou da qual possam dar prova.
Têm medo do conhecimento que ateus têm dos fundamentos da crença, do objeto dessa crença e das motivações dessa crença. Sabem que ateus não se fiam da palavra de apóstolos, profetas, apologistas. Sabem que ateus preferem a dúvida permanente à certeza fácil e confortável. Sabem que ateus estão fora do alcance da manipulação dos “salvadores”. E sabem que sua crença é analisada sem filtro: seu deus aparece tal como é: criação humana, com todos os defeitos e quase nenhuma das virtudes humanas, se chega a haver alguma nesse deus.
Em suma, o que esse tipo de crente mais teme no ateu é o reflexo de seu próprio conhecimento: o de que o objeto de sua crença não passa de quimera.
Mas mais fácil e menos doloroso é se libertar das mentiras que nos impigem do que libertar-se da mentira que se escolhe para viver.
Por isso é necessário tentar calar quem as aponta.

Virgin Steele, Visions of Eden, muito apropriado, de muitas maneiras. Além de belíssimas músicas.



5 comentários:

  1. Não sei se você reparou, mas nas mitologias cristãs e grega, Adão e Eva na primeira e Prometeus na segunda, foram punidos por terem conhecimento ou divulgar esse conhecimento aos homens. O que explica essa raiva que eles têm de cientistas, filósofos e outros pensadores.

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    1. Olá! você tem razão, é interessante notar como a posse do conhecimento é importante a ponto de gerar mitos associando-o a algo errado, mal. Demonstra que o ser humano é sempre o mesmo em qualquer tempo, há aqueles que querem dominar e que entendem que melhor podem fazê-lo se houver ignorantes. É uma espécie de ciclo vicioso: quanto mais ignorante for alguém, mais fácil manipular esse alguém, com esses"ensinamentos" subliminares destinados a fazer com que aceitem que há "escolhidos" para traduzir os desígnios da divindade e/ou da autoridade. Nesse contexto é natural que identifiquem como ''inimigos'' os que não se deixam enredar, e que os associem a agentes do mal.

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  2. Sobre o comunismo, tenho essa citação de Bakunin:
    Estamos convencidos de que o pior mal, tanto para a humanidade quanto para a verdade e o progresso, é a Igreja. Poderia ser de outra forma? Pois não cabe à Igreja a tarefa de perverter as gerações mais novas e especialmente as mulheres? Não é ela que, através de seus dogmas, suas mentiras, sua estupidez e sua ignomínia tenta destruir o pensamento lógico e a ciência? Não é ela que ameaça a dignidade do homem, pervertendo suas ideias sobre o que é bom e o que é justo? Não é ela que transforma os vivos em cadáveres, despreza a liberdade e prega a eterna escravidão das massas em benefício dos tiranos e dos exploradores? Não é essa mesma Igreja implacável que procura perpetuar o reino das sombras, da ignorância, da pobreza e do crime? Se não quisermos que o progresso seja, em nosso século, um sonho mentiroso, devemos acabar com a Igreja.
    — Mikhail Bakunin

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    1. Apesar dos acertos da avaliação de Bakunin sobre a igreja, que no caso é a Ortodoxa Russa mas pode perfeitamente ser estendida a qualquer outra religião e às demais denominações cristãs, discordo veementemente da proposição de que alguém deva tomar a si a tarefa de "acabar" com igrejas/religiões. É uma visão autoritária, totalitária e ineficaz.
      Sequer vislumbro algum tempo em que deixe de havê-las, as religiões, numa forma ou noutra, servindo a esse ou aquele deus, pois não penso que a humanidade alcançará algum dia um estágio tão... independente, digamos, já que não me ocorre palavra melhor. Sempre restará pelo menos o medo soberano da morte. Tenho para mim que esse medo é a origem dos deuses e continuará sendo a causa da criação deles e o resto é acessório.
      Este sempre foi um erro crasso de certos ateus, pretender acabar com as religiões; não entenderam nem entendem que é a forma mais eficiente de cristalizá-las. A maioria das pessoas querem a crença, ela sempre teve e terá uma oferta irrecusável para essa maioria, que é a resposta fácil, confortável e confortante. Qualquer um que declare querer tirar isso das pessoas estará fortalecendo o poder das religiões.
      O que obviamente não significa que os ateus devam se calar, ao contrário. Sempre existe a possibilidade de influir positivamente nos piores aspectos das religiões, não é?

      Obrigada por participar e espero que contribua novamente com seus comentários enriquecedores; estes foram, pelo menos para mim.

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    2. Grato, no caso de Bakunin, apesar dele ter os motivos CERTOS ele estava errado na solução. Eu que sou fã confesso de "welfare state" vi nele uma solução para a possível extinção da religião: o bem estar.
      Afinal, se você vive em um lugar onde você não sabe como estará amanhã, isso se tiver amanhã, é perfeitamente lógico (mas não racional) correr para a igreja em busca de alguma esperança, mesmo que seja após essa vida. Mas quando você tem TODAS as necessidades materiais saciadas, a suposta necessidade espiritual deixa de ser prioritária, o que aumentaria o número de ateus e agnósticos em sua população.
      Há exceções à regra, claro. Tipo o Japão, onde japonês é o famoso religioso "caixa de bombom" em que ele pega só o que interessa e deixa o resto para os outros. Ou na Inglaterra, que como não se separou oficialmente de sua igreja (monarquia, lembra?), os serviços religiosos são cobrados dos cidadãos seguidores da denominação oficial. E aí todo mundo vira ateu, rsrsrs...

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