segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Sepulcro caiado


É um espanto que a humanidade tenha sobrevivido até o advento dos hebreus na face da Terra. A História nos fala de povos mais antigos, mais prósperos, alguns até mais civilizados. Pelo visto a História mente. Pelo menos de acordo com o cristianismo, segundo o qual sociedades constituídas sem o elemento civilizador e moralizador de origem judaico-cristã, logo, de origem hebreia, em pouco tempo se veria esfacelada, destruída. Nós seres humanos nos lançaríamos á barbárie desenfreada, mataríamos nossas crianças, nascidas e por nascer, abandonaríamos nossos velhos para morrer sozinhos, viveríamos num estado de bacanal permanente e incestuosa, provavelmente faríamos do canibalismo um hábito tão sistemático que em pouco tempo a espécie humana se teria autodevorado, isso claro se a matança desenfreada por todo e qualquer motivo não nos extinguisse antes. Por aí.

Essa “leitura” da História cai bem em ouvidos incultos e serve á perfeição para aqueles que não sendo incultos revelam uma inclinação a suprimir evidências em prol do conforto mental, digamos assim. .
Aí acontece de alguém parar e pensar e se aprofundar um tantinho nessa questão. E mal se arranha a superfície, as contradições começam a surgir.

Antes de tudo é preciso colocar as coisas nos devidos lugares. Quando se fala em civilização judaico-cristã, fala-se em civilização ocidental. Isto significa falar das sociedades que foram formadas a partir de uma mescla de vários povos em estágios diversos de civilização. Romanos, gregos, judeus e o amálgama de povos originários de várias partes da Europa central, norte e leste, originalmente denominadas por Júlio César como germanos, resultaram nisto que conhecemos como civilização ocidental.

Vários conceitos de moral comportamental reivindicados pelo cristianismo são em sua maioria anteriores a ele. O cristianismo não inaugurou a civilização moral; nasceu dela e nela; caminhou par e passo com sua evolução, reproduzindo ou rejeitando valores de acordo com esta evolução.

Por exemplo, cristãos gostam de propalar que Jesus Cristo pregou a igualdade entre os seres humanos, condenou a exploração dos pobres pelos ricos e por extensão inspirou a solidariedade, como se estivesse inaugurando a prática desses valores. Só que não.
Na Grécia pré-socrática, vivendo um momento de crise econômica e de valores morais, em que o acesso a bens materiais, conhecimento e participação política e religiosa era direito de uns poucos, enquanto a miséria grassava entre a maior parte da população, inicia-se um comportamento social baseado em uma maior igualdade entre seus membros, pela censura à ostentação e pela busca de um modo de ser em que a cooperação deveria ser mais importante que a ação e a glória individual. Nos dizeres de Nietzsche “moral de escravos contraposta à moral da aristocracia, moral de senhores”.
Ou como se vê na resposta de Esopo a Quílon sobre o que Zeus estaria fazendo:
 “Está humilhando os altivos e exaltando os humildes”.
Quando o Cristo diz: “Os últimos serão primeiros e os primeiros serão os últimos”; e “Aquele que se exaltar será humilhado e aquele que se humilhar será exaltado”, não está fazendo mais que ecoar, ainda que não o saiba, conceitos exprimidos milênios antes dele.
É por esta altura também que o homicídio deixa de ser visto como questão de acerto de contas privado e passa a ser tipificado na legislação como atentado aos interesses sociais.

O cristianismo também gosta de alardear que a instituição da família como a conhecemos hoje se deve ao advento dos valores cristãos como regra.
Não mesmo. Tácito, em seu Germânia, nos conta como os chamados bárbaros tinham como um de seus pilares a família, praticando a fidelidade como um valor fundamental e vendo na mulher um dos sustentáculos tanto do lar quanto da sociedade. Consideravam ser abomináveis práticas como aborto e eliminação de recém-nascidos. E isso ainda na época em que não haviam adotado o cristianismo.
Eram também, em seus usos políticos, muito mais democráticos do que veio a ser a civilização ocidental quando esteve sob o domínio da Igreja Católica durante a Idade Média.

Aliás, quando se fala sobre os excessos da cristandade neste período, nas ferrenhas e sanguinárias guerras muitas vezes fratricidas em que a igreja era parte componente não é raro ver seus defensores mencionando a forma como essa mesma igreja abriu as portas para acolher e cuidar dos refugiados.
Isso é verdade, mas é não menos verdadeiro que uma das partes responsáveis por haver tais refugiados era a própria igreja em suas disputas de poder, fomentando e patrocinando os senhores que melhor servissem a seus interesses. Temos então que os cristãos enxergam virtude na imoralidade. A igreja, primeiro contribuía para que houvesse desabrigados e em seguida faturava a imagem de anjo benfazejo dos necessitados.

Sintomático de como o cristianismo é fruto da moral e dos costumes das sociedades em que se insere é o começo do próprio cristianismo.
Em seus primórdios sua conduta está de acordo com o meio no qual prolifera, o dos desvalidos que viviam em constante conflito com os poderosos. Em oposição ao comportamento licencioso, explorador e perdulário dos ricos, os cristãos primitivos pregam a frugalidade, a igualdade, e a austeridade de costumes, demarcando nitidamente as fronteiras entre desvalidos e poderosos. É uma consequência natural que, sendo a antítese dos opressores, o cristianismo tenha tido sucesso em cooptar os oprimidos.
Notável é que é justamente essa capacidade de somar e unir que desperta o interesse do poder romano, já em seus estertores finais, de cooptar por sua vez o cristianismo. E não menos notável é que tendo ocupado o vácuo de poder deixado pelo Império Romano o cristianismo rapidamente assimila tudo a que antes se opusera: ganância, ostentação, apego ao poder, a estratificação social, a exploração dos mais fracos, até o momento em que, já o próprio cristianismo estando indistinguível do que em seus primórdios combatera, vemos a evolução dos valores ético-morais interferindo e obstando os excessos do cristianismo.
Esse período histórico é bastante didático quanto a demonstrar que não vem do cristianismo nossos melhores valores.

A escravidão é outro ponto em que a moral cristã como valor fundamental vê-se na berlinda.
Enquanto a escravidão foi prática corrente na civilização ocidental também a igreja fez uso dela. O fato de haver, entre membros do clero, aqueles que se revoltavam contra a imoralidade de comerciar seres humanos e submetê-los a todas as indignidades e maus-tratos – decorrentes em boa parte da desumanização a que se reduz homens e mulheres quando são transformados em mercadoria – diz muito bem sobre a noção inerente e individual das pessoas sobre o que seja moral ou imoral. E depõe fortemente contra a igreja cristã enquanto geradora e mantenedora de valores morais fundamentais.

Estes são apenas alguns exemplos que contradizem frontalmente os cristãos.
Resta meditar se é razoável aceitar que o cristianismo, como um valor em si, se apresente como fonte e mantenedor da moral e da ética da civilização ocidental quando é evidente que o que fez foi uma apropriação, tornada  indébita por reivindicar primazia, de usos, valores e costumes, quando lhe foi conveniente.

Ou se é razoável ignorar que o cristianismo,  como todas as instituições, é fruto da evolução humana. Nessa condição tanto é formada por boas pessoas e bons valores, quanto por maus valores e más pessoas. E que sendo a natureza humana o que é, mais fácil é que os valores negativos predominem, já que necessitam das fragilidades humanas para prosperar. E como somos frágeis!



Tendo em vista que esse texto sob certos aspectos trata dos predadores da espécie humana, nada mais adequado que escrevê-lo ao som de Locust do álbum Unto the Locust, Machine Head.











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