Na rua
em que moro, meus vizinhos mais imediatos têm de quatro a seis cães
cada um. Vivo rodeada pelo concerto infindável de ao menos vinte
cães ladrando. Seus donos têm a pachorra de manterem uma
conversação, aos berros, com quem chegue aos seus portões, em meio
à ladraria e nunca sequer fazerem menção de controlarem os animais
para que se aquietem. Isso é dia e noite. Eu tenho dois cães, uma
fêmea que foi abandonada há doze anos atrás, ainda filhote, na
minha porta e um macho que adotei para que não fosse abandonado nas
ruas. São, pela educação que receberam, mais civilizados que meus
vizinhos. Latem apenas para os garis do caminhão de lixo, que passam
nas manhãs de terça, quinta-feira e sábados. E para o carteiro, claro, ou
não seriam cães. O Tex às vezes se entusiasma um tanto, mas basta
que eu saia á porta e o chame num tom firme e ele cala. Eu penso: se
meus cães puderam ser educados, por que não o poderiam ser os cães
dos vizinhos? E me respondo: porque meus vizinhos não têm educação
para consumo próprio, que dirá para transmitir aos cães.
Um
deles, à hora que lhe cai bem à veneta, coloca o carro na calçada
e liga o rádio nas alturas.
Há uma família que tem uma menina de uns dois anos; essa criança tem ataques de choro intermináveis e gritos lancinantes, não por estar sendo maltratada, mas por birra, manha. Nem a mãe, nem a avó põem um paradeiro nesses ataques, agem como se nada estivesse acontecendo. Num fim de tarde a menina gritava com tanto empenho e estridor que fui lá fora ver se lhe acontecera algo, como um piano que lhe tivesse caído no pé; nada, era só mais uma sessão de “eu quero, eu quero, eu queroooooo!!!” Inacreditavelmente, sua mãe conversava, ali ao seu lado, num celular, calmamente.
Uma outra família promove festas que duram a noite inteira, regidas pela mãe, apreciadora de funk lixo. Logo que eles se mudaram para cá, nas primeiras vezes eu, indignada com a situação, acionava a polícia, quando já íamos pelas três, quatro horas da madrugada e a fuzarca parecia acontecer na minha cozinha, tamanha a altura da assim chamada música e os gritos de bêbados arruaceiros dos convidados e da própria família. Assim que a viatura desaparecia do alcance do barulho, eles aumentavam o volume de tudo, da gritaria, do lixo a que chamam música e incrementavam com palavrões dirigidos a quem chamara a lei. Como a única alternativa seria invadir a “festa” com uma arma de fogo e ao menos “matar” o aparelho de som e como eu nunca tive uma arma e nem pretenda ter, a alternativa foi passar a usar fones de ouvido também durante as noites de confraternização dos bárbaros (que já os uso de dia para neutralizar os latidos incessantes e o mal que me fazem aos nervos), em alto volume, para abafar um pouco a alegria alheia. Ainda acabo surda.
Os vizinhos da rua de cima parecem pensar que suas questões domésticas são assunto de prioridade e interesse municipal, pela forma como berram uns para os outros seus desentendimentos. Em dia de jogos do Corínthians ninguém precisa ligar seu aparelho de TV, se não quiser. Eles não apenas colocam o som em volume estrondejante como berram a todo e qualquer lance, nos termos mais coloridos possíveis. Salvo engano, todos os palavrões mais chulos e ofensivos possíveis no rol dos palavrões, que foram evitados em minha casa já foram aprendidos por meus filhos graças à prestimosa e não solicitada colaboração desses vizinhos.
Na rua lateral que dá acesso a uma avenida os motoqueiros passam com canos de escapamento que encomendaram aos fabricantes das espaçonaves que decolam de Cabo Canaveral. Todo final de tarde eu fico na expectativa de ver os vidros das janelas despencarem em pedaços devido à vibração produzida pelo ruído das máquinas.
Mas os
piores são os retardados, babuínos disfarçados
de seres humanos, que passam dirigindo suas caminhonetes e carros com
equipamento de som pelo menos tão potentes quanto a estrutura de som
do Rock in Rio. E eu sei dessa potência, estive lá. A diferença é
que o Rock in Rio acontece a cada dois anos e o local do evento fica
numa região mais afastada das casas das pessoas. Os motoristas aqui
acontecem todos os dias, a qualquer hora do dia e da noite, tocando
funk lixo.
Nos ônibus quase sempre há um imbecil grosseiro mal educado impondo o som estridente de seu celular aos demais, geralmente tocando funk lixo.
Tive uma vizinha que realmente parecia pensar que eu fosse adepta do ditado espanhol “Mi casa su casa”. Ignorou solenemente toda e qualquer demonstração que dei de que ela não era bem vinda. Uma vez me disse que ficou de queixo caído quando conheceu meu marido: não acreditou que um “tipão” como ele fosse casado com alguém tão mirradinha, magrela e sem sal como eu. Outra vez, disse que eu não tinha cara de quem gostasse de rock: eu tinha cara de pagodeira. Foi nesse dia que eu decidi que o Universo era pequeno demais para nós duas.Tão inconveniente era ela que cheguei a temer acordar uma manhã e vê-la dormindo entre mim e o digníssimo. Na melhor das hipóteses.
Felizmente
alguma sorte existe mesmo para uma azarada do meu naipe: ela foi
obrigada a se mudar, por não pagar quatro meses consecutivos do
aluguel.
Na época em que tentei ser professora, fiquei estarrecida com o comportamento dos alunos e de suas famílias, não todos, justiça se faça. Numa sala de quarenta e tantos alunos era possível (mas não muito provável) encontrar dois ou três que estavam lá para estudar e que haviam absorvido ao menos os rudimentos básicos da boa educação. Perdi a conta das vezes em que tive que me esquivar dos carros em frente ao portão da escola, já que a faixa de pedestre, igualmente na frente do portão, estava ocupada pelo carro do papai ou da mamãe, totalmente alheios ao perigo a que expunham as demais crianças a pé. Nunca me esqueço da vez em que presenciei uma cena surreal: passava eu por uma calçada e havia um carro estacionado atravessado na mesma e por isso tive de rodeá-lo pela rua, movimentadíssima àquela hora matinal. Uma mulher tirava do banco traseiro caixinhas de suco, embalagens de biscoitos, de balas, as jogava na rua e enquanto isso repreendia duas crianças:
“a
mamãe já não ensinou que não pode jogar o lixo no carro? Vocês
jogam lixo no meio da casa? Não, né? O carro da mamãe é igual lá
dentro!”
Aliás,
não é futebol o esporte preferido dos brasileiros. É jogar lixo na
rua. Passam de carro, jogam latas de cerveja ou refrigerante pela
janela. Igualmente nos ônibus. Jogam todo tipo de lixo nas ruas.
Alguns, mesmo tendo a cidade bem servida pela coleta de lixo têm
preguiça de levantar mais cedo e deixá-lo na calçada. Num fim de
semana, juntam o lixo acumulado e põem fogo. Ou o deixam fora na
noite anterior e os cães o espalham, expondo toda sorte de nojeira.
O proprietário do lixo espalhado não varre e junta, deixa para o
gari.
Parece ser cada vez maior o número de garotas que antes de se tornarem adultas já têm pelo menos dois filhos de pais diferentes, vivendo em famílias desestruturadas, dependentes das bolsas-esmola. Me admiro com as pessoas que se admiram ao saber que minhas filhas já alcançaram as provectas idades de 18, 20 e 23 anos sem terem um filho cada, ao menos. Casamento é, ao que tudo indica, item dispensável no processo de aquisição do filho. Também me admiro com quem se admira de meus filhos nunca terem repetido um ano escolar, gostarem de ler e serem bons alunos. Nesse quesito, aliás, foi só quando estive numa sala de aula como professora que entendi a razão dos professores dos meus filhos louvarem o fato de que eles eram...educados.
E essas coisas ainda são pouco perto da barbárie que cada vez mais frequentemente vemos nos noticiários. Ainda ontem soube de um pai que matou o filho de oito anos, de pancada. Filho esse que lhe fora enviado pela mãe, que não trabalha e tem vários filhos de pais diferentes.
Por todas essas e mais outras, a sensação que tenho é de ser uma estrangeira no meu país. Não posso deixar de me perguntar, observando a derrocada de tantos e imprescindíveis valores:
O
que aconteceu? O que aconteceu com a noção de que temos o dever de
ter respeito uns com os outros? O que aconteceu com a noção de que
temos o dever de ter consideração uns com os outros? O que
aconteceu com a noção de que temos o dever de constituir família
para dar um lugar razoavelmente seguro aos filhos que vamos por no
mundo? O que aconteceu com a noção de que temos o dever de
transmitir a esses filhos que a educação, tanto a formal quanto a
social, faz parte dos valores essenciais que devemos cultivar? O que
aconteceu com a noção de que temos o dever de trabalhar para termos
direito a nosso sustento?
Eu
nasci numa família extremamente pobre. Eu
e meus irmãos tivemos como herança a
noção desses deveres todos e nenhum bem material. Foram
mais que bastante para, além de melhorarmos materialmente nossas
vidas (com considerável ajuda dos governos do FHC, que se preocupou
em tentar dar chances às pessoas, não esmolas), por nossa vez
constituírmos famílias razoavelmente dignas.
Observando
as coisas cá do meu canto, fico cismando se não estamos nos
“descivilizando”, retornando à condição de selvagens primitivos.
E
se esse processo tem volta.
Escrito ao som do álbum da banda alemã Accept , Balls To the Walls, em homenagem á minha ex-vizinha. Pagodeira, pois sim!

Shirley
ResponderExcluirNão é fácil mesmo conviver com pessoas que não sabem respeitar o espaço dos outros, nossa individualidade e acham que são donos do mundo ao redor de si, esquecendo que para viver em comunidade é importantíssimo ter ética para todas ocasiões.
Acho que todos nós temos alguns vizinhos barulhentos, mal humorados, que nem estão para o silencio depois de uma certa hora da noite.
Moro em apartamento e vou te contar um segredo: sou obrigada a dormir com um tapa ouvido por causa do barulho dos vizinhos do andar de acima que parecem não ter nenhum compromisso com a hora de dormir ou de acordar e quando acordados, os ruídos incomodam e muito.
Eu também me reservo o direito de viver minha vida da forma que gosto, cultivo certa formalidade com a vizinhança só no bom dia, boa noite e não sou lá de ficar trocando receitas, comentando a novela da Globo, mesmo porque há uns 18 anos que não sei contar uma história de novela. Detesto, não tenho paciência, acho o nível baixo e os temas desnecessários, banais, cheios de intrigas etc ...
Na rua onde moro, felizmente há um certo sossego e não tenho o que reclamar. Eu digo na minha rua.
Espero que você encontre paz, porque se for reclamar pessoalmente as coisas tendem a piorar porque são mal educados não compreendem, são extremamente ignorantes e como você mesmo disse: selvagens.
Um abraço
Duas coisas que temos em comum, Ana, também não gosto de novelas e não sou de muita conversa com vizinhos. Antigamente eu dizia que jamais iria morar em apartamento, já que a falta de privacidade e o barulho seriam um problema. Como estão as coisas hj em dia, não importa mais, as pessoas ocupam todos os espaços, mesmo não estando fisicamente neles...rsrrs
ExcluirO jeito é ir levando, pois como vc bem diz, reclamar só serve pra ouvir desaforos.
Um abraço!
Shirley,
ResponderExcluirTem um filme que retrata bem a minha expectativa quanto ao futuro da humanidade. É uma comédia chamada "Idiocracia".
Um militar de baixa patente e inteligência medíocre aceita participar de uma experiência científica do exército e é colocado em estado de hibernação. Devido a um acidente, ele só é acordado muitos anos depois em um mundo já totalmente diferente. Um mundo onde absolutamente todos são completos idiotas.
No filme isso acontece porque todas as famílias idiotas e irresponsáveis se reproduziam descontroladamente enquanto as famílias mais esclarecidas e instruídas costumavam ter menos filhos. Desta forma, a seleção natural perpetuou os idiotas e extinguiu a população esclarecida.
O filme é hilário, pois o cara descongelado passa a ser o homem mais inteligente do mundo.
Oi Marcos, já me falaram desse filme, preciso arrumar um tempinho pra ver.
ExcluirNo passo em que vamos, não duvido que só a gente medíocre sobreviva...
Olá, s.rodrigues. Penso que, só a partir de determinada idade, temos consciência do mal que estamos a fazer uns aos outros quando não cumprimos as regras básicas da civilidade. O facto de sermos novos leva-nos a ter atitudes mais egocêntricas, estamos muito virados para o nosso eu e, quando vamos caminhando para a meia idade, começamos a escandalizar-nos com coisas que, possivelmente, alguns de nós já fizemos. É preferível ser tarde do que nunca. É uma questão de maturidade.E de educação, sem dúvida.
ResponderExcluirOlá Maria
ResponderExcluirPenso que certos comportamentos advém sim da imaturidade, e para iniciar o caminho rumo à maturidade por meio da educação, a família é imprescindível. O problema é quando a família não educa, quando são os próprios pais e mães a darem mau exemplo pelo comportamento. Aí não há que se fazer. É o caso aqui pelas minhas bandas e pelo que observo, por muitos outros lugares.
Sim, não é só no Brasil. Quando as crianças perdem ou danificam livros da biblioteca escolar, há muitos pais que ignoram os avisos para pagar ou comprar as ditas obras. Podiam dirigir-se à escola e, humildemente, confessarem não ter possibilidades económicas para o fazerem. Mas não, o silêncio impera.
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